BRASÍLIA. Cartão de visita do PSDB, o Plano Real, quase não saiu do papel por causa da resistência de caciques do partido. Eles temiam um fiasco em ano eleitoral, que significaria uma derrota para o PT de Lula na segunda eleição direta após a ditadura. Os brasileiros estavam traumatizados com projetos fracassados dos governos Sarney e Collor para acabar com a inflação herdada do regime militar.
Os principais líderes tucanos explicitaram o desejo de engavetar o plano em uma reunião realizada em março de 1994, no apartamento em que morava o então ministro da Fazenda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), em Brasília. Antes dele, o governo-tampão de Itamar teve três ministros da Fazenda em sete meses, que fracassaram na missão de reorganizar a economia.
O convite para FHC assumir o Ministério da Fazenda ocorreu em 19 de maio de 1993. Ele era o ministro das Relações Exteriores e voltava de uma viagem ao Japão. Pernoitava em Nova York. Era tarde da noite quando o telefone tocou. Assim que seu chanceler atendeu, veio o convite para a Fazenda. FHC pediu para pensar melhor. Queria dar a resposta no Brasil, após conversar com familiares.
Fernando Henrique teve que dar a resposta no dia seguinte. Contrariando a família, que temia o desgaste no cargo, aceitou o convite mediante uma exigência: montar a equipe. Conseguiu. A ele se uniram os economistas Winston Fritsch, Edmar Bacha, Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco e Pedro Malan. Sete meses depois, o Plano Real estava pronto. Faltava convencer os políticos.
“Fomos chamados (a equipe econômica) para o apartamento do Fernando Henrique. Estavam lá os caciques do PSDB, como o (José) Serra e o Tasso (Jereissati). Eles não queriam lançar o plano antes das eleições. Alguns não queriam pacote algum. O (Mário) Covas era exceção”, recorda Winston Fritsch, que havia deixado o cargo de professor universitário da PUC-Rio para virar secretário de Política Econômica.
“O Covas virou pra gente, em um ultimato: ‘Já fomos longe demais na elaboração desse plano. Vocês garantem que ele vai dar certo?’”, completa Fritsch. Após ouvir a garantia de FHC e dos integrantes da sua equipe, Covas deu o aval. Os demais líderes do PSDB ficaram em silêncio. O então senador Mário Covas disputaria o governo de SP naquele ano. Jereissati almejava o governo do Ceará. Serra concorreria ao Senado.
Ministros também eram contra
O Real começou a ser arquitetado pelo time de FHC no primeiro semestre de 1993. A moeda foi lançada em 1º de julho de 1994. Antes disso, o plano também sofreu ataques de ministros de Itamar. “Poucos queriam o Real. Era forte a desconfiança e a resistência, inclusive dentro do governo. É verdade que o Fernando Henrique pediu demissão. O plano só saiu porque o Itamar confiava muito nele”, ressalta Fritsch.
Mas, lembra Fritsch, o próprio Itamar expunha, em reuniões com a equipe econômica, suas desavenças com o plano. “Ele rechaçava, principalmente, os cortes de gastos públicos e o veto a aumentos para servidores. Mas o Fernando Henrique, pacientemente, explicava todas as medidas, e ele entendia, apesar de nem sempre concordar”, conta o ex-secretário de Política Econômica.
Itamar queria uma solução rápida contra a hiperinflação. O presidente não era adepto das ideias liberais do ministro da Fazenda. Nacionalista convicto, defendia o controle estatal nas mais diversas áreas. Simpatizava com um novo congelamento de preços, como fez José Sarney em 1986 com o Plano Cruzado.
FHC pediu demissão três vezes
Em reunião no Palácio do Planalto em 28 de fevereiro de 1994, um domingo, FHC ouviu de colegas ministros, na frente de Itamar Franco, diversos argumentos contra o real. Entre eles, que o plano travaria a criação de empregos e, com o tempo, fracassaria, turbinando a inflação. Houve quem pediu novo congelamento de preços.
FHC chamou à sala o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, para ajudá-lo a defender o plano que estava pronto para ser colocado em prática, a partir do dia seguinte, por meio da Medida Provisória 434, com 45 artigos. Mas nada convencia os demais ministros. Itamar ficava em silêncio.
Fernando Henrique não entendia aquela situação, após o plano ter sido explicado em dezenas de outras reuniões e já ser certa a publicação do documento que permitiria seu lançamento. Pediu demissão três vezes. Itamar o convenceu a continuar no governo, após garantir a divulgação da MP do Real.
Dali em diante, começaram a ser cumpridas as três fases definidas pelos economistas: o ajuste das contas públicas, com corte no Orçamento; a implantação da Unidade Real de Valor (URV), unidade monetária para desindexar a economia; e o lançamento da nova moeda, o real.
Em 1º julho de 1994, a URV perdeu as letras U e V, permanecendo o R, de real. A nova moeda nascia valendo o mesmo que um dólar. O sucesso da nova moeda garantiu não só a eleição dos caciques do PSDB contrários ao lançamento do plano como elegeu FHC presidente da República no primeiro turno de 1994, com reeleição quatro anos depois. Sem congelamento de preços, o Brasil chegou a inflação de país desenvolvido.
A queda da inflação a partir do Plano Real
- De 1964 a 1994, a inflação brasileira foi de 1.142.332.741.811.850%.
- O índice era de 50% ao mês em junho de 1994, último mês da URV.
- Em julho de 1994, a inflação foi de 6,8% ao mês – 120% ao ano.
- Nos primeiros 12 meses do real, a taxa acumulada foi de 33%.
- Em meados de 1997, a inflação caiu abaixo de 10% ao ano no acumulado de 12 meses. E no fim de 1997, caiu abaixo de 5% ao ano.
- Em 1998 a inflação foi de 1,6%.
Economistas “pais” do Real:
- André Lara Resende: Ex-presidente do BNDES, desempenhou papel importante na criação da URV, um dos pilares do Real.
- Edmar Bacha: Ex-presidente do BNDES e do IBGE, contribuiu com sua expertise em políticas econômicas para a concepção e implementação do Plano Real, especialmente no controle da inflação.
- Gustavo Franco: Ex-presidente do Banco Central (BC), desempenhou papel fundamental na formulação das políticas econômicas necessárias para estabilizar a economia brasileira.
- Pedro Malan: Negociador da dívida externa brasileira (1991-1993), presidente do BC (1993-1994) e ministro da Fazenda (1995-2002). Desempenhou papel crucial na concepção e implantação do Real nos governos de Itamar e FHC.
- Pérsio Arida: Ex-presidente do BNDES e do BC, foi figura-chave na equipe econômica que liderou a transição para o Plano Real, ajudando a desenvolver estratégias para controlar a hiperinflação e estabilizar a economia.
- Winston Fritsch: Professor universitário que contribuiu com sua experiência acadêmica e conhecimento técnico para o desenvolvimento do Plano Real, especialmente na formulação de políticas monetárias e fiscais.