A casa da especialista em agilidade empresarial Márcia Alves, de 44 anos, que ela divide com a irmã, o marido e a filha de cinco anos, é uma demonstração da rotina de muitas famílias brasileiras de classe média. “Tanto eu quanto minha irmã trabalhamos de casa. Ela tem um plano de internet fibra da Oi e eu, da Claro. Meu marido assina o YouTube, eu assino o Prime, a Netflix do meu pai, que não mora aqui, e minha irmã assina nossa Netflix, Globoplay e Disney+. O Max vem com meu plano de internet. Acho que é só... Só isso tudo. Tudo o que podemos pedir por aplicativo ou WhatsApp, pedimos, desde compras de supermercado até presentes. Cada um paga o seu Uber, que usamos muito. iFood até desinstalei, porque, quando está instalado, ficamos preguiçosos e comemos mal. Mas, de resto...”
Os serviços que ela lista são hábitos consolidados para parte das famílias brasileiras: quem não pegava táxi, agora chama um carro de app; quem não tinha TV a cabo, agora assiste a séries no streaming. Além da facilidade, eles adicionam pressão sobre os gastos da classe média no Brasil. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos 12 meses, a inflação para a classe média foi mais acentuada do que a das classes mais baixas, impulsionada pelas altas do setor de serviços, que inclui o streaming e outras opções online. De serviço em serviço, há quem admita gastar até R$ 1.000 por mês com as alternativas online.
“Tem que guardar boa parte da remuneração só para esse tipo de serviço. Acredito que eu gaste em torno de R$ 800 a R$ 1.000 com todos eles. Reconheço que é um valor alto, mas, pela questão de toda a praticidade e a otimização do tempo que eles trazem, consigo colocar no meu orçamento”, diz o advogado Mateus Carvalho Pacheco, 29. “De zero a dez, eu colocaria fácil em nove a importância desses serviços para mim, porque acho que são uma comodidade. Você está a fim de comer uma coisinha e não quer cozinhar, abre o aplicativo e pega uma comida. Eles dão cupons, então acabam nos fidelizando. E dificilmente você vê alguém assistindo a um canal aberto, agora é streaming. Eu e minha esposa gastamos fácil R$ 700. Enquanto está dando para pagar, a gente paga. Diminuir, com certeza, mas cortar 100%, não”, descreve o bancário Felipe Martins de Castro, 30.
Há dez anos, o iFood engatinhava no Brasil, o Uber havia acabado de chegar ao país, e a Netflix ainda não era uma realidade para os brasileiros. Uma década depois, e potencializadas pela pandemia de Covid-19, essas tecnologias se embrenharam no cotidiano das famílias de tal forma que algumas não cogitam abandoná-las nem quando pressionam o orçamento, como se fossem uma nova necessidade básica.
“Venho para o trabalho de Uber todos os dias. Uso streamings diariamente e tenho todos. Netflix, Max, Disney+... Não abro mão do Spotify de jeito nenhum. Se tirassem todos eles de mim, fariam muita falta e isso mudaria muito o curso da minha vida, eu teria que pensar em uma nova rotina. Fazem parte do meu dia a dia, e eu não conseguiria abrir mão deles”, atesta a consultora jurídica Larissa Sepúlveda, 26.
“Tudo isso tem que ser pensado pela perspectiva da pandemia. Foram anos em que as pessoas compararam equipamentos online e tudo quanto é tipo de serviço digital que se possa imaginar”, avalia o professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape) José Mauro Nunes. “Existe uma mudança significativa no modelo de consumo atual. Vemos surgir o modelo de assinatura, a economia de acesso, em que não se paga pela titularidade do bem, mas pelo acesso a ele”.
A mudança impacta não somente cada família, mas a economia do país. “É importante entender que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil está muito amparado pelo setor de serviços. Não há uma pesquisa consolidada sobre a participação dos streamings e outros serviços do tipo nele, mas certamente é grande e pressiona muito o orçamento da classe média”, pontua o professor. Um levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) demonstra que só o iFood representou 0,53% do PIB nacional em 2022, o equivalente a R$ 97 bilhões.
Na ponta do lápis, quanto você gasta com Netflix e mais?
O custo de cada serviço online pode parecer pouco — em alguns casos, não passa de R$ 20 mensais. Mas, somados, eles podem comprometer o orçamento. O preço dos serviços de streaming de vídeo mais assinados no Brasil varia de R$ 18,90, plano mais básico da Max, até R$ 89,90, a opção mais completa da Globoplay. Quem decide assinar o plano mais barato dos sete maiores disponíveis no país desembolsa, hoje, R$ 190,30 por mês — quase 13,5% do salário mínimo. O valor é cada vez maior: o preço dos streamings aumentou 40% em três anos, quase o dobro da inflação geral no mesmo período.
Além deles, entram na conta das famílias outros serviços, como apps de entrega de comida e de transporte — alternativas que podem ser mais caras do que as tradicionais. Em 12 meses, o custo dos transportes em geral aumentou 4,56% no Brasil. Já o transporte por aplicativo teve alta de 6,47% no mesmo período, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Quando compara o preço de comer fora a pedir comida, o consumidor também vê diferença. O gasto médio por pedido no delivery no Brasil, por exemplo, é de R$ 66,21, 12,5% mais alto do que a média da refeição em um restaurante, segundo pesquisa da empresa de benefícios corporativos Ticket. Fora mais gastos pontuais, como assinaturas de programas de apoio a produtores de conteúdo e pagamento de espaço extra na nuvem do Google, por exemplo.
Para fazer tudo isso funcionar, o consumidor precisa, ainda, assinar um plano de internet fixa ou móvel. Em Belo Horizonte, o preço médio da banda larga é R$ 109,90, segundo levantamento do site de comparação de preços Melhor Plano. Nacionalmente, a média de gasto com internet móvel é de R$ 29,61, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Na ponta do lápis e considerando todas essas informações, uma pessoa que use apenas a internet do celular para assinar um único streaming e pedir comida pelo iFood duas vezes por mês já gastaria R$ 180,93 — se não pedir nenhum carro de app e não tiver internet fixa em casa.
O perigo desse tipo de custo para o orçamento familiar começa na forma de pagamento, muitas vezes automático no cartão de crédito cadastrado nas plataformas. “Todas as pesquisas de comportamento do consumidor mostram que a pessoa tende a gastar mais quando não percebe o desembolso físico do dinheiro. Quando o pagamento é recorrente no cartão de crédito, a pessoa toma um susto no final do mês quando chega a fatura”, analisa o professor José Mauro Nunes.
“Outro problema é a pulverização dos serviços. É um Uber aqui, um Deezer ali, um Spotify aqui, uma Netflix ali, uma Disney+ se você tem criança em casa... Quando vê, ultrapassou R$ 2.000”, completa.
Quanto custa cada streaming?
O streaming é uma força da economia e do entretenimento no Brasil: em 43,4% dos domicílios com TV, as famílias assinam pelo menos um, segundo levantamento do IBGE com dados de 2022. Três serviços respondem por quase 60% do mercado nacional. Confira:
Os preços variam de R$ 18,90 a R$ 89,90. Confira os valores:
- Netflix: R$ 20,90 a R$ 59,90 no plano mensal;
- Amazon Prime: R$ 19,90 no plano mensal e parcelas de R$ 13,90 no anual;
- Max: R$ 29,90 a R$ 55,90 no plano mensal e parcelas de R$ 18,90 a R$ 39,90 no anual;
- Disney+: R$ 43,90 a R$ 62,90 no plano mensal e R$ 368,90 a R$ 527,90 no anual;
- Globoplay: R$ 59,90 a R$ 89,90 no plano mensal e parcelas de R$ 29,90 a R$ 59,90 no anual;
- Star+: R$ 40,90 no plano mensal e R$ 329,90 no anual;
- AppleTV: R$ 21,90 no plano mensal.
Especialistas dão dicas para aproveitar serviços sem comprometer a renda
Como qualquer planejamento financeiro, encaixar os gastos com streaming e outros serviços online confortavelmente no bolso exige conhecer o próprio orçamento. “Temos algumas teorias de organização familiar. Umas das mais difundidas é uma tríade para organizar as finanças: 50% do total para as despesas do dia a dia, como alimentação, deslocamento e estudos, 30% para variáveis, como viagens, passeios e algo de longo prazo, e 20% para investimentos”, apresenta o professor de ciências contábeis e diretor da Estácio Floresta Alisson Batista.
Se o transporte por aplicativo ou os serviços de streaming forem considerados essenciais para a família, por exemplo, eles podem ser alocados na fatia de 50%. Decidir o que é ou não supérfluo exige reflexão, pontua o professor. “Se você assina Prime, Netflix, Max, aquele monte de streaming, pode refletir: quantas vezes os usei no último mês? É importante ver o acúmulo. O delivery pode ser só uma vez por mês? Se você pedir uma pizza, pode comprar o refrigerante no supermercado, e não no aplicativo, em que vai custar o dobro”.
Também é possível economizar ao optar pela assinatura anual dos serviços, em geral mais barata do que a mensal. Mas ela também exigem cuidado, lembra o coordenador do MBA de Gestão Financeira da FGV, Ricardo Teixeira. “Comprar com desconto é melhor, a não ser que seja alguém muito comedido que sabe que não usará tanto. Olhando o orçamento, vemos o que podemos reduzir, e cada pessoa sentirá, no seu momento de vida, quais mudanças serão menos sofridas”, conclui. Mas reconhece que abrir mão desses serviços já não é uma escolha fácil para muitas famílias: “eles se consolidaram como um hábito porque oferecem vantagens”.
(Com colaboração de Bruno Daniel e Folhapress)