A corrida de rua é frequentemente mencionada como um esporte democrático, que não exige grandes investimentos e ultrapassa classes sociais. Mas ela é também motor de um mercado milionário. Belo Horizonte está na rota desse movimento e, em março de 2025, receberá sua competição com o maior número de inscrições da história desse esporte na capital — a Corrida Supermercados BH, que tem mais de 20 mil inscritos. Na esteira desse tipo de evento, estão corredores amadores que, além de pagar a inscrição, investem em tênis especiais, relógios inteligentes, pagam assessorias para melhorar a performance, compram fotos de treinos e giram a economia até de bares na cidade.
O Brasil tem, hoje, 13 milhões de corredores, segundo um levantamento divulgado em janeiro pela marca esportiva Olympikus em parceria com o instituto de pesquisa de tendências de consumo Box1824. Isso faz dela o quarto esporte mais praticado no país, atrás da caminhada, da musculação e do futebol. A prática não é novidade nas ruas do Brasil ou de BH — a Volta da Pampulha, por exemplo, começou em 1999 —, mas ganhou um novo impulso após a pandemia, que evidenciou os esportes ao ar livre e os cuidados com a saúde.
Isso significa não só bem-estar para mais gente. Significa dinheiro. “BH tem muita gente correndo. E, com muitas corridas, as pessoas estão comprando tênis, suplementos, treinando fortalecimento, consultando nutricionistas, contratando assessorias especializadas. As provas de corrida também fazem girar uma cadeia de suprimentos, com gradis, tenda, a lista é gigante. É todo mundo mercado que elas movimentam. Os hotéis lotam na Volta da Pampulha, porque a galera do Brasil inteiro vai para BH”, introduz o presidente da Associação Brasileira de Corrida de Rua e Esportes Outdoor (Abraceo), Guilherme Celso.
Faz três anos consecutivos que o setor de organização de corridas de rua mineiro experimenta um crescimento anual de 40% em faturamento e número de participantes, segundo um dos sócios da TBH Esportes, a maior empresa do ramo em Minas, Miller Junqueira. “Há marcas que se interessam pelo volume do público, para fazer um marketing para um volume maior de pessoas. Há aqueles especializadas em produtos mais saudáveis e focadas nesse consumidor. E há também as marcas que fazem as corridas pelo institucional. É um evento familiar e politicamente correto. As pessoas estão ali preocupadas em ter um estilo de vida mais saudável, e as marcas têm interesse em falar com esse público”, detalha.
A empresa está por trás de alguns dos maiores eventos esportivos da cidade, como a Corrida do Bope, que lotou a Via Expressa em fevereiro, e a Corrida do BH, que ocorre na Pampulha no dia 30 de março. Em eventos da escala da corrida do supermercado, as marcas investem mais de R$ 2 milhões na organização.
As corridas organizadas por varejistas são, hoje, um dos segmentos com maior impulso, segundo Junqueira — além do BH, também oferecem corridas a Drogaria Araujo, o Supernosso e o Verdemar, por exemplo. Parte do interesse dos corredores em participar está nos kits que acompanham o ingresso. Na corrida do Verdemar em 2024, o ingresso de R$ 150 a R$ 180 garantia uma cesta com bebidas, alcoólicas ou não, sabão em pó, arroz, ovos e mais de uma dezena de outros produtos.
Para os corredores, participar dos eventos e concluir os percursos é também um desafio pessoal. O gerente comercial Thiago Barbosa, 38, começou a correr com consistência em 2023, primeiro como uma tentativa de aliviar o estresse após uma internação do pai. Hoje, a corrida não é só um hobby, mas um estilo de vida. “Eu quero fazer corridas fora, ir para o Rio, para Florianópolis e, depois, pensar em correr fora do país, como Buenos Aires, que é perto, Nova York... A imaginação vai fluindo”, diz.
Os gastos com o esporte se avolumam: são três tênis (o mais novo, de R$ 800), um relógio específico para corridas, a assinatura de um plano da plataforma de registro de corridas Strava, shorts e camisas, inscrição em corridas... “Tem muita coisa, se você tiver dinheiro”, brinca ele. De olho no filão, até marcas sem histórico de tênis esportivos se lançam no mercado. Neste ano, a Zara, por exemplo, lançou um tênis com placa de carbono — o material é famoso entre corredores por aumentar a propulsão dos passos.
‘Durmo e acordo corrida’
A corrida se tornou também uma realização pessoal. Thiago é um dos voluntários do projeto Instituto Corre Pra Ver, que conecta guias a corredores com deficiência visual em BH. Em uma relação de alta confiança, o guia segura a ponta de uma corda, e a pessoa cega segura a outra enquanto os dois correm lado a lado.
Um dos parceiros de corrida de Thiago é o gerente comercial aposentado Cloves Soares Veloso, 58. Sem visão há três anos, ele começou a correr pela preocupação com a saúde mental e, hoje, não para mais. “Durmo e acordo corrida. É muito mais do que um hobby, é uma necessidade. Meu corpo grita se eu não treino”, diz. Agora, ele investe em treinar para sua primeira maratona neste ano, no Rio de Janeiro, e planeja viagens internacionais para participar das estrangeiras.
Thiago e Cloves correm juntos no projeto Corre Pra Ver (Crédito: Alex de Jesus/O TEMPO)
Sorria, você está sendo fotografado enquanto corre
“Tem gente que fala que não adianta só treinar, tem que postar”. A fala do CEO da plataforma de fotografia Fotop, André Chaco, resume um dos motivos do sucesso de um mercado em ascensão, o dos fotógrafos de corridas e treinos. São autônomos que se posicionam ao redor de provas de corrida ou na orla da Pampulha no dia a dia para registrar corredores e, depois, vender as fotografias a eles.
Uma das principais empresas do ramo, a Fotop recebe centenas de milhares de fotos de corredores todos os dias. Além dos registros em provas com parcerias oficiais com a plataforma, fotógrafos também a abastecem com imagens de treinos ao ar livre diariamente. “As fotos de treino foram uma tábua de salvação durante a pandemia, porque as pessoas não podiam fazer eventos e, quando começaram a relaxar um pouco e a correr em locais públicos, entendemos essa oportunidade e deu super certo. Nós dobramos de tamanho a cada ano”, apresenta Chaco. Cada fotografia de corredor cadastrada na plataforma custa, em média, de R$ 15 a R$ 20.
Fora do circuito comercial, crews de corrida pavimentam caminho de novos corredores
Nem só em dias de grandes eventos ou na orla da lagoa da Pampulha é possível ver uma multidão correndo pelas ruas de BH. Semanalmente, a cidade é agitada por grupos de corrida independentes, os crews. São grupos que se reúnem gratuitamente em diferentes pontos da capital e traçam um percurso com todos os participantes juntos. Qualquer interessado pode participar, basta ficar atento às redes sociais dos grupos e estar no ponto de encontro na hora marcada.
“Estamos vivendo uma era de ouro da corrida”, celebra Bernardo Biagioni, um dos fundadores do Calma Clima, pioneiro do movimento na cidade desde 2017. Com os anos, ele cresceu tanto que atraiu a atenção da Nike, hoje patrocinadora oficial do grupo. Ele se reúne nas noites de terça para vencer trechos de cerca de 6 km. “O Calma acaba sendo uma plataforma para uma cadeia da corrida. É uma forma de preparar as pessoas para uma assessoria esportiva, e as pessoas compram materiais novos. Muita gente que corre no Calma acaba participando de provas, mas nós estamos em um lugar de gratuidade”.
Os crews se consolidam também como um ambiente de socialização — e de flerte, como a febre das meias azuis em BH transparece. A dinâmica respinga em setores inesperados, e as corridas em BH movimentam até botecos. Em plena terça-feira, o Calma Clima leva uma pequena multidão a bares no final do trajeto. Às quintas, o movimento se repete com outro crew, o Corre Capivaras.
Nascido em 2024, o grupo brinca com trajetos na cidade e desenha diferentes formas nos percursos — como uma taça de vinho, uma caneca e a frase “BH é nóis”. Seja qual for a forma, ela termina em um bar. “Nosso after é muito forte. Os bares sempre querem que nós voltemos, porque movimentamos bastante. Conseguimos parcerias e eles sorteiam chopps. Tem gente que fica até o bar fechar a porta e vai pra outro depois”, conta um dos fundadores, Thiago Ribeiro.
O que é necessário comprar para correr?
O tênis mais caro, a roupa mais nova, o smartwatch mais tecnológico: tudo isso é necessário para correr bem? “O tênis pode motivar a pessoa, mas, de modo geral, temos tipos de tênis com diferentes pisadas, que teoricamente garantem desempenho físico, mas não é bem assim. Temos que considerar a realidade de cada pessoa. Tem pessoas que gastam R$ 1.000, R$ 2.000 em um tênis, mas conseguimos encontrar opções por bem menos. Não é algo totalmente necessário”, defende a diretora científica da Sociedade Brasileira de Atividade Física e Saúde (SBAFS), Daisy Motta.
Os smartwatches podem oferecer informações interessantes — e nem sempre totalmente precisas — para melhorar o desempenho. Por outro lado, também podem causar mais ansiedade do que ajudar, pondera Motta. “O relógio pode trazer certa ansiedade. Quando você ajusta o mostrador, pode colocar que quer ver a frequência cardíaca e a velocidade, por exemplo, e para algumas pessoas isso pode causar ansiedade em ficar olhando o relógio. Hoje, com um cronômetro a gente consegue treinar”.
De todo o arsenal disponível para os corredores, o que Motta mais recomenda são as assessorias esportivas, que oferecem orientações personalizadas de treino. E recomenda que especialmente os corredores amadores que correm em provas longas mantenham os exames cardiológicos em dia. “O ideal seria que todos, independentemente da idade, pudessem fazer um eletrocardiograma de repouso, um exame não invasivo para detectar algumas irregularidades, e também o eletro de esforço, que é feito por um cardiologista”, diz. E recomenda: se uma dor muscular durar mais de 48 horas após a corrida, é hora de procurar um médico.