Com atividades de fiscalização reduzidas por escassez de verba, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) sofreu um corte de 82% no orçamento desde 2013. A verba caiu de R$ 749 milhões em 2013 - valor já corrigido pela inflação -, para R$ 134 milhões em 2024. Neste ano, a receita aprovada era de pouco mais de R$ 140 milhões. Todavia, cortes promovidos a partir do ajuste fiscal do governo, o valor foi atualizado para R$ 106,7 milhões.

Com a redução nos recursos disponíveis para custear as atividades discricionárias - não previstas em lei -, a ANP informou nesta segunda-feira a redução nas atividades de fiscalização de irregularidades no setor de combustíveis. Também haverá paralisação, no mês de julho, do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis.

A iniciativa, segundo dados da própria agência, identificou quase 20 mil amostras de gasolina, diesel e etanol adulteradas em postos de combustíveis do país. As fraudes ocorreram entre fevereiro de 2016 e junho de 2025, de acordo com o painel de monitoramento disponível no site da agência. O principal alvo das adulterações é o diesel, fonte de quase 60% das irregularidades observadas no período.

Ao informar a redução de atividades em função da falta de recursos, a ANP afirmou que trata-se de medida emergencial, que pode ser revista caso o cenário atual se altere nos próximos meses. O presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), Emerson Kapaz, chama a atenção para o risco de uma maior infiltração do crime organizado no setor de combustíveis com a redução da inspeção. 

Estimativas do mercado indicam que o Primeiro Comando da Capital (PCC) controla mais de 900 postos no Brasil. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou que facções criminosas movimentam quase R$ 62 bilhões no mercado de combustíveis, anualmente - valor que supera em quatro vezes os lucros com o tráfico de drogas. “Nós temos visto o crime organizado crescente e temos tido muita dificuldade de mapear essa infiltração no setor”, disse. 

“Se você, antecipadamente, anuncia que não vai fiscalizar no próximo mês, obviamente quem atua na irregularidade vai ter uma tranquilidade maior para adulterar. É uma coisa inacreditável”, completou Kapaz.O presidente do ICL criticou o governo federal pela redução do orçamento. Para ele, a União não consegue dar importância à agência, responsável por controlar o sistema de combustíveis no Brasil. 

“A pergunta que eu faço é a quem interessa uma ANP fraca? O governo está tirando mais de R$ 30 milhões de um orçamento já apertado. Se considerarmos a sonegação no período sem fiscalização, esse valor vai ser muito maior do que a economia que o governo almeja. É uma medida vertical não avaliada”, criticou Emerson Kapaz, que vê uma maior facilidade para que distribuidoras não apliquem a mistura de 14% de biodiesel ao diesel e de 27% de etanol sobre a gasolina. 

Arrocho fiscal 

O economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps) Eric Gil Dantas diz que o corte no orçamento da ANP reflete os resultados do arrocho fiscal. “Em menor medida, isso foi o que aconteceu em diversas áreas do país entre 2015 e 2022, como nas universidades, no programa de merenda escolar e no Ibama. A permanente política de arrocho fiscal tem consequências concretas, o sucateamento do Estado, e a consequente deterioração dos serviços prestados”, criticou Dantas. 

Para ele, o setor de postos de combustíveis precisa de uma fiscalização forte, bem como as coletas de amostras do programa de monitoramento de qualidade. “E isso custa dinheiro, assim como as outras pesquisas da ANP, que são em grande parte pesquisas de rua (in loco)”, acrescentou Eric, que também vê uma brecha maior à infiltração de facções criminosas.

“O sucateamento da fiscalização estatal abre caminho para a atuação de grupos criminosos em diversos setores, como o imobiliário, o garimpeiro, o ambiental, o de agrotóxicos e o do fumo - para além do exemplo do PCC e os postos. É fundamental que a discussão fiscal e tributária esteja aliada com as necessidades reais da população, e os serviços da ANP são com certeza são de primeira ordem”, complementou.   

Principais irregularidades 

De acordo com a ANP, em 2024 foram realizadas 17.341 ações de fiscalização no mercado de combustíveis. As inspeções resultaram em 4,6 mil autos de infração aplicados. As principais irregularidades encontradas nas amostras de gasolina fora da conformidade foram o teor de etanol abaixo do ideal, sendo responsável por 61,5% das fraudes encontradas. 

Para o etanol hidratado, as principais irregularidades tinham relação com o teor alcoólico abaixo do ideal, enquanto no diesel o problema central foi o volume de mistura do biodiesel abaixo dos 14% definidos pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). 

Manifesto contra orçamento baixo 

Em manifesto, entidades do mercado de combustíveis criticaram os cortes no orçamento da ANP e classificaram a medida como 'trágica'. "Uma ANP enfraquecida fica limitada em ações essenciais, o que o histórico já mostrou, abre espaço para
o aumento de riscos à segurança veicular, à integridade dos motores e à saúde pública, além de favorecer concorrência desleal e prejuízos à arrecadação tributária, sendo um atrativo para criminosos no setor de combustíveis", diz a nota. 

O texto ainda detalha os prejuízos ao consumidor, caso veículos sejam abastecidos com combustíveis adulterados. "Os impactos são diretos e severos: sem uma agência reguladora atuante, aumentam os riscos de abastecimento com combustível de má qualidade – seja diesel, gasolina, biodiesel e etanol", complementou. 

O movimento cita a doação de cinco equipamentos para verificação, nos postos de combustíveis, da mistura de biodiesel ao diesel. A entrega será feita ao Ministério de Minas e Energia (MME). "Estamos doando, mas vai adiantar algo, já que não se tem dinheiro para colocar equipe em campo?", questionou o presidente do ICL, Emerson Kapaz. 

O manifesto é assinado pelo ICL, Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom); Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (BRASILCOM); Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (FECOMBUSTÍVEIS); Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP); Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (SINDICOM) e Sindicato Nacional Transportador Revendedor Retalhista (SINDTRR).