Com a meta do governo federal de ampliar a mistura obrigatória de biodiesel no diesel fóssil para 20% até 2030, o chamado B20, o debate sobre os efeitos dessa transição ganha novo fôlego no setor de transportes. A partir de agosto, o teor obrigatório do biodiesel passará de 14% para 15% no país.

Embora ambientalmente estratégica, a mudança gera dúvidas técnicas sobre consumo de combustível, durabilidade dos motores e a qualidade da cadeia de distribuição diante da chamada Lei do Combustível do Futuro, sancionada recentemente pelo presidente Lula.

Para esclarecer o tema, Camilo Adas, engenheiro e presidente do conselho da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), detalhou os pontos mais críticos em entrevista exclusiva ao Autotempo.

Segundo ele, é necessário separar os mitos das evidências técnicas quando se fala no impacto do biodiesel.

Mito ou verdade: o biodiesel aumenta o consumo?

Adas é direto: do ponto de vista termoquímico, o biodiesel possui menor densidade energética do que o diesel mineral. Isso significa que, em tese, veículos consomem mais combustível para percorrer a mesma distância quando há maior presença de biodiesel na mistura.

“A eficiência energética do biodiesel puro é entre 4% a 8% inferior à do diesel fóssil. Isso é ciência, não é opinião”, explica o especialista.

No entanto, ele pondera que o impacto dessa diferença, na prática, é bastante diluído.

“Quando falamos de uma mistura de 15% ou 20%, o aumento no consumo é tão pequeno que, geralmente, é imperceptível. Fatores como o peso da carga, o relevo da estrada ou o estilo de direção do motorista afetam muito mais o consumo do que a diferença entre B10 e B20”, acrescenta.

Manutenção e durabilidade: o calcanhar de Aquiles?

Outro temor recorrente no setor de transporte é a maior frequência de manutenção em veículos que utilizam misturas mais altas de biodiesel.

Isso teria origem na suposta menor compatibilidade dos motores atuais com biocombustíveis, além de questões como formação de borra, entupimento de filtros e corrosão de componentes.

Mas, segundo Adas, esse risco não está relacionado diretamente ao biodiesel em si, mas sim à qualidade da cadeia de produção, transporte e armazenamento do combustível.

“Não adianta demonizar o biodiesel se o problema está nos processos e não no produto. A legislação brasileira, em especial a Resolução ANP nº 920/24, é uma das mais rigorosas do mundo. O problema é garantir que todo o sistema funcione dentro dessas normas”, alerta.

Ele cita que existem hoje no Brasil cerca de 55 usinas de biodiesel e que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) publica relatórios periódicos de fiscalização.

“Infelizmente, há casos recorrentes de não conformidade. Se o combustível sai da usina dentro do padrão, mas se deteriora no transporte ou nos tanques dos postos, a responsabilidade não é do biodiesel, mas da negligência ao longo da cadeia”, critica.

Montadoras se adaptam ao B100

Contrariando o argumento de que os motores não estão preparados para misturas elevadas, Adas destaca que grandes fabricantes já oferecem modelos compatíveis com biodiesel puro (B100).

Scania e Volvo, por exemplo, já comercializam no Brasil caminhões com tecnologia específica para rodar com B100. Isso mostra que a indústria sabe como se adaptar quando há demanda e regulação clara”, aponta.

O especialista, no entanto, reconhece que a transição exige responsabilidade. “Não se trata de obrigar toda a frota a rodar com biodiesel puro da noite para o dia. O B20 é um caminho intermediário viável, desde que acompanhado de controle de qualidade, fiscalização eficiente e educação técnica para motoristas e frotistas”, recomenda.

Brasil está na média global

Questionado sobre a posição do Brasil no cenário internacional, Adas esclarece. “Não somos nem os mais ousados, nem os mais conservadores. Singapura, por exemplo, já usa até 35% de biodiesel; e na Suíça é permitido o uso de B100. Na Europa, o avanço depende das temperaturas, como no inverno rigoroso, e, por isso, muitos países preferem o HVO (óleo vegetal hidrotratado), conhecido no Brasil como diesel verde”, pontua o engenheiro.

O HVO, por sua vez, tem menor sensibilidade ao frio e pode ser usado puro sem alterações relevantes no desempenho, favorecendo seu uso em regiões com temperaturas negativas severas.

No Brasil, segundo Adas, o biodiesel atende bem às exigências climáticas nacionais, desde que sua formulação respeite os parâmetros sazonais de temperatura definidos pela ANP.

Fiscalização em xeque e alerta do setor

Recentes cortes orçamentários na ANP acenderam o alerta entre especialistas. “Fiscalização é o pilar que sustenta todo o programa de combustíveis sustentáveis. Não adianta criar uma das melhores legislações do mundo se não houver dinheiro para fiscalizar sua aplicação", enfatiza o especialista.

Entidades do setor, entre elas a própria SAE Brasil, assinaram manifestos cobrando o restabelecimento dos recursos para a ANP, sobretudo no contexto da nova Lei do Combustível do Futuro, aprovada recentemente e considerada um marco para a descarbonização do transporte no país.

Futuro com cautela e ciência

Para a SAE Brasil, o avanço para o B20 no país é visto como positivo, mas exige comprometimento da cadeia produtiva, fiscalização rigorosa e investimento em educação técnica. 

“A pergunta não é se o biodiesel é bom ou ruim, mas se estamos garantindo que ele chegue ao tanque do caminhoneiro com a qualidade que a lei exige. Se a resposta for sim, não há motivo para temer o B20”, conclui Adas.

Testes feitos no passado 

Em 2005, um teste realizado em um gerador movido a diesel, da marca Yanmar, acendeu o debate técnico sobre os impactos do uso do biodiesel B100 em motores a combustão. 

Os resultados, que indicaram redução de consumo e manutenção ao utilizar a mistura com 20% de biodiesel, chamaram atenção de especialistas, mas também levantaram dúvidas sobre sua representatividade para motores mais modernos.

O experimento publicado em artigo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná, revelou números promissores: queda de até 6,8% no consumo de combustível e aumento na autonomia de até 33 horas no motor estacionário testado.

A repercussão foi imediata entre defensores do aumento da proporção de biodiesel na matriz energética. No entanto, especialistas alertam que os dados não podem ser generalizados para toda a frota diesel em circulação no país.

Especialista aponta limitações nos testes

Para o engenheiro Christian Wahnfried, coordenador da comissão técnica de diesel e biodiesel da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), o tipo de motor usado no teste em questão compromete a validade dos resultados para aplicação em larga escala.

“O que me chamou a atenção é que é um teste feito num gerador da Yanmar, provavelmente um motor pequeno, monocilíndrico e de concepção bastante antiga. Ainda utiliza sistema mecânico de injeção, sem controle eletrônico”, explicou Wahnfried. “Estamos falando de uma tecnologia que remete a padrões anteriores ao Proconve P8, nosso atual Euro 6.”

Segundo ele, a melhora registrada nos testes, inclusive na redução de consumo com B20, pode estar ligada a características muito específicas daquele motor e de sua calibração.

“O biodiesel tem um teor energético cerca de 20% menor do que o diesel mineral. Em tese, isso deveria aumentar o consumo. Se houve redução, é um sinal de que a resposta daquele motor é atípica”, afirmou.

Experiência técnica contradiz resultados 

Wahnfried relata ter acompanhado uma série de testes com diferentes teores de biodiesel ao longo das últimas duas décadas, sempre com resultados distintos conforme o tipo de motor.

“Nos testes com B5, B10, B15, observamos um leve aumento no consumo. Ele aumentou menos do que se esperava do ponto de vista energético, mas aumentou”, disse.

Segundo o engenheiro, cada montadora define a calibragem de seus motores de forma independente, o que torna perigoso basear decisões técnicas e políticas em apenas um tipo de experimento.
“Depende muito de cada motor, cada projeto. Não dá para cravar uma regra geral a partir de um único teste", atesta.

Manutenção e logística preocupam 

Outro ponto levantado pelo especialista é a questão da durabilidade e manutenção dos veículos com o aumento de teor do biodiesel no diesel puro.

Embora um biodiesel de boa qualidade não deva causar impacto direto, a realidade logística do país pode representar um desafio.
“Quando o biodiesel fica muito tempo estocado ou percorre longas distâncias até o destino final, ele pode se degradar. Isso forma depósitos e pode entupir filtros, o que aumenta o custo de manutenção”, destacou.

Além disso, há impactos já documentados em termos de lubrificação do motor. “É fato: com teores acima de 20%, muitas montadoras recomendam dobrar a frequência de troca de óleo. Em vez de 10 mil km, por exemplo, a troca teria que ocorrer a cada 5 mil km”, alertou.

Segundo ele, esses fatores podem afetar diretamente o custo de operação de frotas e até o valor do frete no futuro. “Não dá pra afirmar categoricamente, mas há tendência de aumento de custo, sim. Agora, se isso vai impactar o consumidor final, ainda é difícil de prever.”

Nova fase de testes será decisiva

O Ministério de Minas e Energia, segundo Wahnfried, está organizando uma nova rodada de testes com motores mais atuais para avaliar o impacto do B20 em cenários reais.

“A gente espera que esses testes com veículos Proconve P8, já com eletrônica embarcada, nos tragam respostas mais representativas”, disse.

Ele destaca ainda que os estudos anteriores, conduzidos entre 2017 e 2019, foram feitos com motores Proconve P7, anteriores aos atuais padrões ambientais.

“Hoje, com o B20 previsto para se tornar obrigatório até 2030, é crucial entender como os motores mais modernos vão reagir”, concluiu.

Futuro exige cautela e mais dados

O debate sobre o biodiesel B20 no Brasil está longe de ser consensual. Enquanto setores do agronegócio e parte do governo veem a medida como avanço ambiental e estratégico, técnicos da indústria automotiva pedem prudência.

“Precisamos de testes robustos, com diferentes tipos de motores, condições climáticas, e aplicações. Só assim poderemos construir uma política pública que traga ganhos ambientais sem prejudicar a operação logística e os custos do transporte no país”, finalizou Wahnfried.