Mineiros são discretos, comem quieto e pelas beiradas. A fama de um povo reservado pode até fazer sentido em alguns casos, mas cai por terra no centro de Belo Horizonte, onde as vendas são feitas à base do grito. São chamados de “foto! Foto na hora! Foto” na praça Sete, anúncios de exame oftalmológico gratuito em óticas na avenida Afonso Pena e promoções de ômega 3 em caixas de som seguindo pela rua dos Caetés. Para quem passa, pode ser só a paisagem sonora do centro da cidade, mas é também o ganha-pão de locutores profissionais que se garantem na voz e no carisma.
 
A profissão, velha conhecida de quem anda pelo centro de BH ou por ruas comerciais do interior de Minas, ganhou holofotes em rede nacional com o “Big Brother Brasil 2024”. Uma das participantes, a paulista Beatriz Reis, de 23 anos, é locutora de lojas no Brás, bairro focado no comércio popular de vestuário em São Paulo, e seus vídeos gritando pelas ruas da região viralizaram após o início do programa. Confira no vídeo:

 

Nem todos os locutores nas ruas de BH têm a energia de Beatriz — caótica, dizem alguns seguidores na internet. Cada um desenvolve uma estratégia para fisgar a atenção de quem passa na calçada. Na esquina entre as ruas Caetés e São Paulo, o locutor Renato Ribeiro, 49, fala rápido e animadamente até quando baixa o microfone para conversar com a reportagem. “Eu sou desinibido, e a locução me deixou mais. Tem locutor que só fala, mas eu pego cliente, levo no caixa. O funil de AIDA [Atenção, Interesse, Desejo, Ação] ajuda”, diz.
 
Renato Ribeiro, 49, anima porta de lojas com sua locução
 
O funil de AIDA é um conceito de mercado segundo o qual primeiro se fisga a atenção do consumidor até conduzi-lo à ação — uma venda, de preferência. Renato domina essa ideia porque, além de locutor, é estudioso do marketing. Também é pastor, daí seu gosto pelas palavras e pelo contato com o público. “Me chamavam para falar em rádios, aí fiz um curso de locução”, diz, antes de baixar a música da caixa de som do estabelecimento a pedido de um policial.
 
A algumas ruas dali, na Carijós, a porta de uma loja de roupas se converte em um circo comandado pelo palhaço Rabicó. É o personagem que Diones Luciano, 39, encarna no horário de trabalho para atrair a clientela. “Na vida real, sou sistemático, mais sério. O palhaço Rabicó é com quem eu ganho meu pão. Eu danço Joelma, faço pegadinha, falo que tem gente caindo do prédio para as pessoas pararem para olhar”, conta, de bolas vermelhas pintadas no nariz e nas bochechas.
 
Palhaço Rabicó, personagem do locutor Diones Luciano, 39
 
Um episódio da infância em Manhuaçu, na Zona da Mata, explica seu gosto pela locução. Quando o radinho da família estragou, ele e o irmão tanto tentaram consertá-lo que acabaram transmitindo a própria voz para as caixas de som sem querer. “A gente não tinha TV, só rádio. Começou a brincar, e meus pais falaram que eu tinha jeito de locutor”, conta. Ele se tornou uma voz em rádios locais até se mudar para BH em 2003 e criar Rabicó.
 
Não a infância, mas a puberdade, é a gênese de outro locutor do centro. Em frente a uma farmácia, Paulo Martins, 45, lista remédios com a voz aveludada de quem anuncia a próxima música da programação romântica da madrugada na rádio. Quando ele larga o microfone e começa a conversar no mesmo tom, a reportagem pergunta se a voz dele é naturalmente assim mesmo. Sim, garante, é gene da família, herdado do pai.
 
“Na escola, as professoras me chamavam para fazer apresentações e ler por causa da minha voz. Eu tinha muita vergonha”, rememora. Já que as pessoas ao redor gostavam, ele decidiu apostar na carreira desde os 19 anos e não parou desde então. “Meus diferenciais são a voz, a dicção e uma locução que faz o cliente pensar. Chamo atenção para a necessidade dele. Pergunto: ‘está estressado? Cansado? Saiba que ômega 3 pode ajudar’”, exemplifica.
 
Paulo Martins, 45, foi incentivado a ser locutor devido à sua voz
 
Para outro locutor, Martins Mineiro, 52, a pandemia foi o impulso. “Fui vendedor por 23 anos. Com a Covid, fiquei mais na locução da loja. Peguei a doença e não fiquei mal, mas comecei a tomar remédio mais forte para a pressão. Já que não morri, decidi procurar viver mais, brincar, sem estar muito preso à empresa. Saí da loja faz um ano e nisso me aprimorei. Gosto muito de ser freelancer, porque você é seu patrão e dá o melhor de si mesmo”, diz.  
 
No dia em que circulou pelo centro, a reportagem não encontrou locutoras em lojas — no máximo, uma vendedora que decidiu improvisar com o microfone. Elas são raras, pois muitos comerciantes ainda pensam que apenas “vozeirão de homem” vende, dizem no mercado. Mas algumas quebram esse preconceito, e uma delas é Rosângela Aparecida Vieira, 41. Ela trabalhava em uma grande varejista como demonstradora — a pessoa que mostra aos clientes como os produtos funcionam —, até que a empresa fechou esse departamento, com a pandemia, e ela decidiu perseguir o antigo sonho da locução.
 
“Outra locutora me inspirou. Os clientes me contam a história deles e eu conto a minha. Não falo só produto e preço, eu ajudo com uma mensagem, uma ideia, uma receita. É um encontro. Troco energia com o cliente”, conta. 

Informal, locução em porta de loja é caso de paixão

Em um dia, a reportagem conversou com mais de uma dezena de pessoas que trabalham com a voz no centro de BH, entre locutores, divulgadores de loja e ambulantes. Em algum ponto da conversa, quase todos mencionaram que esses são trabalhos duros, mas que os ajudam a distrair a cabeça. A interação quase ininterrupta com o público e a visão de milhares de pessoas diferentes todos os dias são a graça de ocupações que, muitas vezes, são informais e pagam pouco pelo tamanho do esforço.
 
“Os locutores do varejo não têm sindicato ou regulamentação. Infelizmente, é um trabalho mal remunerado, porque é uma atividade de muito amor e paixão pelo que se faz. Se eu chamar um locutor agora e disser que só tenho R$ 15 para pagar pela hora, ele vem porque gosta. Locução é, sim, uma arte”, pondera o professor de locução Leo Cardoso, que herdou alguns estudantes do Grupo Seixas, um dos mais tradicionais do ramo em BH, hoje focado em outros nichos.
 
A rotina de trabalho dos locutores é ditada pela Lei do Silêncio, que restringe o ruído de anúncios no centro de BH das 10h às 16h. Pelas cinco horas de trabalho, com uma de almoço, eles costumam cobrar de R$ 100 a R$ 200, e a maioria têm seus próprios equipamentos de som. Alguns firmam acordos com uma só rede de lojas, mas grande parte é freelancer e vai aonde quer que seja chamada.
 
Para os comerciantes, é um acordo que compensa. “Uma cliente disse ontem que estava no fim da rua e entrou porque ouviu a promoção na locução. Chamamos um locutor agora porque estamos com muita liquidação, e o movimento está fraco. Em dezembro, por exemplo, não chamo, porque já vai bombar de vender por causa do Natal”, descreve a gerente de uma das lojas onde o palhaço Rabicó trabalha.
 
"Eles humanizam a relação com o consumidor e até contribuem para inibir furtos e roubos nos estabelecimentos. A atuação deles com certeza ajuda a aumentar as vendas. As lojas devem respeitar a legislação e evitar ao máximo gerar a poluição sonora, pois isso pode gerar multas", sublinha o presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcelo de Souza e Silva. 
 
O trabalho dos locutores é predominantemente informal, mas outros profissionais da voz têm espaço no mercado de carteira assinada. Algumas redes de ótica, por exemplo, contratam um time de divulgadores, profissionais que ficam na frente da loja, geralmente sem microfone, e conduzem clientes até exames de visão rápidos.
 
“Cerca de 30% dos clientes que entram na loja são atraídos pelos divulgadores. Temos 19 lojas, quatro divulgadores fixos e alguns freelancers. Além do salário, eles recebem por clientes que fecham e foram levados por eles. Não exigimos experiência, mas boa comunicação e não ter vergonha na abordagem”, detalha a gerente de uma ótica no centro, Aline Poliana.

Além da locução, outros “profissionais do gogó”

Na porta de uma ótica na avenida Afonso Pena, Marcelo Marques da Silva, 53, combina falas e gestos a um cartaz pendurado no pescoço anunciando que a loja trabalha com crediário. Sem microfone, ele se descreve como um divulgador, e não um locutor. “Trabalhei 20 anos na frente do edifício Acaiaca vendendo doces, paçoquinha, sombrinha... Passei por diversas profissões, mas a que me fez mais feliz foi a de divulgador. Eu posso me expressar, falar o que vem à mente”, conta. “A praça Sete é uma escola de vida”.
 
Marcelo Marques da Silva, 53, divulgador de óticas
 
Para Rosana de Fátima Santana, 54, também. Há 16 anos, Rosana é uma das dezenas de pessoas que vestem um colete colorido para gritar “foto! Foto na hora! Foto” na praça Sete. Três de suas filhas trabalham com ela. “Já tive depressão e isso aqui me ajudou muito, porque me distraio e conheço muitas pessoas. É uma família. Se um ladrão passa aqui, seguramos para a polícia pegar. Já botei o pé na frente para um ladrão cair”, diz. Ela é paga por cliente que consegue levar até um estúdio de fotografia em uma das galerias comerciais da praça. Às vezes, o trabalho rende. Em outras, não: “já teve dia em fiquei aqui de manhã até as 16h e só consegui duas pessoas”.
 
Em uma esquina próximo à praça, o vendedor ambulante Adriano Lins, 48, esconde-se do sol sob um guarda-chuva preto, vendendo sombrinhas a pleno pulmão: “Antes você levar do que o fiscal!”. Além de vendedor, ele se torna uma espécie de vigia quando está na rua, e lança olhares nervosos sobre os ombros a cada segundo, por receio de perder sua mercadoria para fiscais da prefeitura, que proíbem comércio ambulante sem registro. Enquanto não for pego, ele pretende continuar a gritar.