Quando a loja de departamentos Mesbla anunciou um retorno ao formato online, após 23 anos fechada, gerou uma enxurrada de mensagens de afeto nas redes sociais e foi parar em todos os principais jornais do país. A mensagem do criador do Orkut, uma das redes sociais mais queridas dos brasileiros até 2014, anunciando novidades em breve, também causou frenesi de saudade. Dos 20 filmes mais vistos em 2021, quase metade são reinterpretações de personagens e histórias que já tinham sido levadas ao cinema décadas antes, como “Duna” e “Cruella”, e a telenovela das nove, “Pantanal”, reproduz a história de 30 anos atrás.
Em Belo Horizonte, o consumidor se depara com um fliperama no Mercado Novo, uma loja que vende cartuchos de Nintendo na rua Carijós e uma videolocadora na Savassi. A presença forte do passado não é só impressão: há décadas, a nostalgia é uma poderosa estratégia de marketing e, com cada vez mais memórias armazenadas na internet, tende a se tornar mais relevante ainda.
“A principal forma de agregar valor é conseguir enriquecer um produto, um serviço, uma ideia com significados. Por que uma obra de arte vale tanto? É pela qualidade do material? Não, é pela riqueza de significado. A mesma coisa acontece com o produto nostálgico. A nostalgia é uma forma de agregar camadas de significados, emoções e idealizações. E, no mundo contemporâneo, a internet amplia a capacidade humana de armazenar memória fora da mente. É como se nosso estoque de passado nunca tivesse sido tão grande”, diz o professor de marketing do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Flávio Medeiros.
Confira, abaixo, negócios que usam a nostalgia como combustível em BH e no Brasil:
Mercado Novo retoma hábito antigo de passear pelas lojas
Construído na década de 1960, pelo menos desde 2018 o Mercado Novo, no Centro de Belo Horizonte, tem sido cada vez mais ocupado por bares, restaurantes e lojas de moda, reapresentando a uma clientela jovem o hábito antigo de passear pelos mercados na capital. Instalada no endereço, a loja Made In Beagá aposta na nostalgia dos belo-horizontinos em produtos como um jogo de tabuleiro original sobre a história da cidade, ao estilo dos tradicionais Show do Milhão e Jogo da Vida.
“A gente vai trazendo vários elementos que fizeram parte da cidade, como o cinema que havia no Edifício Acaiaca. Todos os nossos produtos remetem à história de BH. Temos referências da nossa infância e da história da cidade”, explica um dos sócios da marca, Guilherme Pertence. A loja também vende, por exemplo, balas de maçã da belo-horizontina Lalka, com o slogan de “gostinho da infância” e ilustrações que remetem a antigos hábitos, como andar de burrinho no Parque Municipal e soltar papagaio na Praça do Papa. Outra estrela da loja são produtos da capivara Hilda, personagem criada para homenagear as capivaras da Lagoa da Pampulha (que diminuíram drasticamente desde 2014) e Hilda Furacão.
Em outro corredor do Mercado Novo, funciona o Fliper do Gringo, um fliperama com oito máquinas movidas a fichas. Nas paredes, estão expostos os recordes de jogadores fiéis que passam horas na frente das telas antigas — uma das máquinas é da Futurama, que funcionava no Shopping Cidade. “Esse fliperama tem o mesmo perfil de onde eu jogava quando eu era pequeno, quando ia em um que funcionava em Contagem”, relembra um dos sócios, Jean Ramaldes.
Site vende monóculos de fotos, à moda dos anos 80
Pecinhas de plástico de poucos centímetros de altura e, no fundo, uma foto impressa do tamanho de uma moeda de dez centavos, avistada através de um vidrinho. Esses são os monóculos, com que muita gente já deve ter se deparado na gaveta dos avós. Pelo menos é que o fotógrafo Athos Campos, que comercializa essas peças pela internet, ouve dos clientes.
“As pessoas mexem na gaveta da avó quando são crianças, encontram os monóculos e, depois, nunca mais os veem, até acharem no Instagram. Era uma coisa muito distribuída em circos também e as pessoas têm essa referência”, conta ele. A maior demanda da sua marca, iniciada em 2005, eram grandes eventos, em que empresas compravam milhares de unidades. Com a pandemia e a diminuição das festividades, ele passou a vender unidades avulsas e estojos de lembrancinha — e já recebeu até pedidos para enquadrar "nudes".
Videogames retrô reerguem loja de games no Centro de BH
Nos anos 90 e 2000, quando foi inaugurada, a Bits Games vendia os consoles de jogos mais populares da época, como Super Nintendo e o primeiro PlayStation. O tempo passou e, há poucos anos, as opções voltaram a fazer sucesso com a clientela da proprietária, Roni Bits.
“Na linha retrô, os que mais vendo são o Super Nintendo 7 e o PlayStation 2, que as pessoas jogavam naquela época em casa, na casa do primo. A nostalgia nos deu um novo recomeço, uma nova oportunidade”, diz Roni. A loja se tornou um ponto de encontro de histórias de infância, conta ela, na reportagem completa sobre a trajetória do negócio.
Locadora resiste na Savassi e até aumenta movimento na pandemia
Mesmo na era dos serviços de streaming e anos depois de a última Blockbuster fechar as portas de vez em Belo Horizonte, algumas videolocadoras resistem na capital. Na Savassi, a ArtVídeo registrou até aumento de aluguéis de filmes durante a pandemia, conta a proprietária, Marlene Gomes.
“Teve mais gente procurando, porque o pessoal ia para sítios. Eu tenho muitos clientes de mais idade que falam que não conseguem achar filmes no streaming e alugam quatro, cinco para uma semana. Mas também estudantes de cinema que buscam filmografias completas. Procuram muito os filmes de Tarkovski [cineasta russo morto em 86], mas também continuo a comprar filmes novos, como ‘Benedetta’ e o novo ‘Matrix’”, diz.
Por outro lado, a loja, que também vende antiguidades e peças de arte, se enche de jovens que só querem registrar fotos dos DVDs para publicar nas redes sociais, sem alugar nada. “É muita nostalgia, às vezes parece até um museu”, brinca Marlene.
Mesbla muda quase tudo, mas volta com campanha nostálgica e investe meio milhão de reais
Filho de um ex-funcionário da Mesbla, o empresário Ricardo Viana investiu R$ 500 mil para ter o direito ao uso do nome da loja de departamentos, famosa no século passado, e relançar a marca em 2022. Ela não terá endereços físicos, por ora, e funcionará apenas como marketplace, na internet, e sem vender todo o leque de produtos da Mesbla original.
Mesmo com a mudança, clientes antigos comemoram em peso o retorno nas redes sociais, e a própria marca reconhece o poder da nostalgia: o slogan de sua nova campanha é “uma nova história para toda a vida”. “Nostalgia e a Mesbla se misturam de uma forma quase que simbiótica. Vejo pessoas de 20 anos, que não souberam o que foi a Mesbla, mas que usam os endereços das antigas lojas como pontos de referência para encontros”, destaca Viana. Em BH, por exemplo, o prédio que abrigava a loja, entre as rua Curitiba e a avenida Afonso Pena, ainda leva o nome da loja.
Um futuro pela frente: pandemia acelerou nostalgia no mercado
Após a pandemia, a onda nostálgica pode se aprofundar, avalia o professor de marketing. No início da crise sanitária, o Spotify registrou um aumento de 54% na busca por músicas e playlists de músicas de décadas passadas. “A nostalgia é um deslocamento no tempo e no espaço, saudade de um tempo familiar. A pandemia a acelerou”, conclui o professor de marketing Flávio Medeiros.
Muito anterior à internet, a nostalgia remonta ao século 17. Nos produtos contemporâneos, ela se ancora repetidas vezes nos anos 1980 — como a série da Netflix “Stranger Things”, que tem uma das temporadas mais caras da história da TV. A época é querida no entretenimento mesmo por quem nem a experimentou pessoalmente. “Com certeza, é a principal referência simbólica de passado que nós temos. Economicamente, houve expansão das mídias naquele momento e vários ícones da nossa cultura pop surgiram nessa década. Já tínhamos os Beatles antes, mas a indústria da música se consolidou nos anos 80 e vimos surgir os videoclipes, por exemplo”, diz Medeiros.