Não é de hoje que Minas Gerais chora vidas perdidas na mineração. A pedido de O TEMPO, o coordenador da comissão permanente do setor mineral da Superintendência Regional do Trabalho e do Emprego de Minas Gerais, Mário Parreiras de Faria, fez um levantamento que mostra que a taxa de mortalidade do setor é três vezes maior do que a média geral do país. Ele cruzou dados da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) com o número de empregos da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). “Com base nos últimos dados, de 2017, para cada grupo de 100 mil empregados, a taxa é de 5,57 óbitos para todas as atividades. Na mineração, ela é de 14,81 mortes”, afirma Faria.
O desastre em Brumadinho remete ao vazio de várias outras famílias que, em catástrofes anteriores, também perderam entes queridos. “Minha mágoa é que todo mundo fala de Mariana, fala de Brumadinho, mas não lembra do acidente com a barragem da Herculano, em Itabirito. Será que é porque morreram só três pessoas? Mas eram três vidas, eram três pais de família”, lamenta Suzana Serravite da Costa Melo, 63. No dia 10 de setembro de 2014, além do marido dela, o topógrafo Reinaldo Costa Melo, então com 68 anos, morreram o motorista Christiano Fernandes Silva, 32, e o operador de retroescavadeira Adilson Aparecido Batista, 44, que teve o corpo encontrado 40 dias depois do rompimento.
Na ocasião, familiares de Adilson contaram à reportagem de O TEMPO que ele teria comentado que havia instabilidade na estrutura e disse que morreria trabalhando. Segundo relatos dos parentes, o operador chegou a avisar à encarregada sobre o risco, que mandou um e-mail com fotos sobre o problema à gerência da empresa. Porém, o problema foi ignorado.
Um ano e três meses depois do rompimento da barragem, a Polícia Civil indiciou, por homicídio com dolo eventual e por mais sete crimes ambientais, cinco pessoas da Herculano e uma da empresa que fazia auditoria da estrutura. Mas ninguém chegou a ser preso. A ação tramita no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Procurada, a empresa não se manifestou.
No caso da Vale em Brumadinho, a polícia está investigando troca de e-mails que indicam que funcionários sabiam do risco oferecido pela barragem da mina de Córrego do Feijão. Oito empregados estão presos. Outros três funcionários da Vale e dois engenheiros da Tüv Süd – responsável pela auditoria de segurança –, chegaram a ser detidos, mas já foram liberados.
As famílias dos trabalhadores mortos no desabamento da barragem de rejeitos da Herculano Mineração foram indenizados pela empresa. “Dinheiro nenhum paga a falta que o Reinaldo me faz. Como ele pegava trânsito todo dia, dirigindo cerca de 50 minutos para ir (de Belo Horizonte) para Itabirito, meu medo era a estrada. Não imaginava que a bomba estava dentro da mineradora. Até quando a mineração vai fazer isso com os seres humanos?”, questiona Suzana. Ela faz questão de dizer que Reinaldo morreu fazendo o que amava. Eles foram casados por 39 anos.
Treze anos antes do desmoronamento da barragem em Itabirito, em 2001, a barragem da Rio Verde Mineração estourou. Cinco operários morreram trabalhando. No dia 21 de junho de 2001, o mestre de obras Jayme Gomes dos Santos, hoje com 73 anos, estava voltando para a casa depois de um dia de trabalho, quando foi surpreendido. “Fiquei mais ou menos 45 minutos debaixo da terra, até que a lama desceu e eu comecei a quebrar o vidro. Aí consegui respirar, enfiei a mão e consegui abrir o caminhão e sair. Depois disso, todo dia eu durmo e acordo com medo de acontecer de novo. E parece que o pior dos mundos está acontecendo”, conta o sobrevivente. Jayme ainda mora em Macacos.
No último dia 16, estava dormindo quando acordou com o barulho da sirene anunciando o risco de rompimento da barragem da Vale. A empresa acionou o plano de emergência e retirou cerca de 200 moradores da área de risco.
Números são subnotificados
Por semana, cem trabalhadores são vitimados pela mineração no país. Entre 2012 e 2018, foram 37.478 pessoas feridas em serviço, sendo que uma parcela delas teve que se aposentar ou até morreu enquanto buscava o sustento. Mesmo que significativo, o número de acidentados levantado pela Secretaria de Previdência, ligada ao Ministério da Economia, ainda não revela com exatidão a quantidade de profissionais que têm a vida afetada negativamente pela atividade.
O coordenador nacional de defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), Leonardo Osório Mendonça, estima que o número seja bem maior. “O Brasil é um dos países onde os trabalhadores mais se acidentam no mundo. Mas esses dados dizem respeito apenas aos vinculados ao INSS. Se incluirmos os informais, o número pode ser sete vezes maior”, destaca.
A utilização de mão de obra terceirizada na mineração é outro fator que colabora para a subnotificação. “Globalmente, a cada empregado direto, a Vale tem 0,77 terceirizado. Além disso, muitos fornecedores subcontratam. Então, em um rompimento de barragem como o ocorrido com a estrutura da mina de Córrego do Feijão, é difícil saber quantos trabalhadores não vinculados à Vale foram mortos, já que estão no meio terceirizados, quarteirizados, e por aí vai”, afirma o integrante do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMas), Rodrigo Santos.
Terceirização
Sem dados. A Vale não divulgou a lista das prestadoras de serviço nem informou quantos terceirizados estão entre as vítimas. Segundo especialistas, isso abre espaço para subnotificação de mortos.
Procuradora culpa Vale por desastre
Para a procuradora Ana Cláudia Gomes, do Grupo Especial de Atuação Finalística (Geaf) montado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) para apurar o caso Vale/Brumadinho, é inaceitável acontecer um acidente dessa proporção. Ela responsabiliza a empresa por colocar em risco seus trabalhadores e critica a escolha do método de construção de barragem a montante.
“Na medida que a Vale, que é uma das maiores mineradoras do mundo, faz a opção por um processo produtivo mais econômico, porém mais arriscado do ponto de vista humano e ambiental, ela está praticando uma concorrência desleal. Está formando um valor para o produto dela por meio dessa economia ‘porca’”, avalia a procuradora do MPT.
“Até quando? Garantir que o trabalhador chegue bem em casa deveria ser um dogma das empresas”
Ana Cláudia Gomes
Procuradora do MPT
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