A participação de Lady Gaga em “Coringa: Delírios a Dois”, que entra em cartaz hoje nos cinemas, não é por acaso. A continuação do filme de 2019, que rendeu o Oscar de Melhor Ator para Joaquin Phoenix, é, acima de tudo, um musical no sentido amplo da palavra – sim, com direito a vários números de cantoria e dança, ainda que Phoenix não tenha na voz e nos pés um de seus talentos.

É de se admirar a ousadia do diretor Todd Phillips e dos executivos da Warner em relação à sua grande mina de ouro – antes de “Deadpool & Wolverine”, o original era o líder de bilheteria para filmes com classificação 18 anos. Seria algo esperado se optassem por suavizar o conteúdo violento para ampliar o público, mas partir para algo completamente novo (e arriscado) é algo inédito em produções dessa envergadura.

Esse desejo de experimentação – certamente algo que motivou Phoenix a querer embarcar numa segunda parte – já fica explícito na abertura, quando “Delírios a Dois” apresenta uma animação, intitulada “Eu e Minha Sombra”, que remete à técnica usada na década de 1930 usada nesse formato, com personagens (e cenários) que se mexem de uma forma que parece que estão sempre dançando.

Já é uma quebra importante de expectativas, após o final apoteótico e violento de “Coringa”. Essa introdução animada diz muito sobre o que veremos a seguir, apresentando um discurso em direção oposta, que levanta a bandeira da antiviolência. Embora Artur Fleck já tenha sido mostrado como uma vítima do sistema, abusado pelo padrasto e maltratado pela mãe, o filme amplia essa ideia a partir de Arlequina.

A personagem de Lady Gaga – que já teve dois filmes solo lançados, com Margot Robbie no papel – é a antítese do Coringa. O grande amor que envolve o casal tem como motor o culto de ódio criado em torno do vilão mais famoso de Batman (o herói, por sinal, ainda não dá as caras por aqui), com o personagem sendo lentamente tragado pela imagem que criou, eleito como arauto contra os poderes já corrompidos.

De certa forma, ele surge na defensiva – literalmente, porque a história é também um filme de tribunal, consumindo grande parte da trama. E, ainda, porque Fleck carrega uma postura mais reativa, por assim dizer, sempre agindo em resposta aos estímulos, sejam eles românticos ou violentos. Muitas vezes, vindos da mesma pessoa. Não seria forçado dizer que a segunda parte tem Arlequina como grande protagonista. 

A homenagem aos musicais se justifica como uma representação do que se passa na mente de Coringa. Apaixonado, ele vislumbra cenas que reproduzem momentos contagiantes do gênero, com um repertório de canções voltado principalmente para a década de 1970, que é mais ou menos a época em que o filme se passa (isso não é explícito na trama). Esses elementos colaboram para “Delírios a Dois” se tornar um perturbador musical sobre amores perdidos.