São Paulo. David Cronenberg ainda continua sendo um dos poucos diretores do mundo que consegue abordar o futuro da humanidade a partir das ciências e da tecnologia, relacionando-as à ética e à moral, sem fazer disso um discurso contra o sistema. Não há um cunho explicitamente religioso ou político, com os filmes se atendo geralmente a homens obsessivos, que criam quase um mundo à parte.

Esse perfil se enquadra perfeitamente a Karsh, o protagonista de “O Senhor dos Mortos”, mais recente longa-metragem do diretor canadense, em exibição na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ele tenta driblar a perda da esposa, vítima de um câncer, ao acompanhar a pós-morte dela, um dos temas mais misteriosos e intrigantes em torno da criação do homem.

O argumento criado por Cronenberg é brilhante e, de certa maneira, muito possível, mostrando o personagem vivido por Vincent Cassel como o inventor de uma mortalha high-tech que envolve os cadáveres quando enterrados. Desta forma, ele consegue acompanhar o que acontece com a esposa (ou melhor, com o corpo dela), a partir de um fascínio que extrapola a paixão pela mulher.

Além de Karsh não aceitar a morte, outro ingrediente presente na trama é a necrofilia, que ganha ares de normalidade ao se transformado em negócio, a partir de cemitérios tecnológicos que permitem aos parentes verem, pelo celular, em imagens tridimensionais, o estado de decomposição dos falecidos. Com isso, Cronenberg faz, inteligentemente, a ligação entre obsessão, tecnologia e sexualidade.

Só por elementos o filme se sustentaria, já que o personagem está completamente envolvido por essa perversão doentia, que o impede de estabelecer novos relacionamentos amorosos. Nas primeiras cenas de “O Senhor dos Mortos”, o protagonista está na cadeira de um dentista, sendo informado que os dentes dele estão apodrecendo, como se deteriorassem junto ao corpo da mulher.

Essa relação é muito interessante, porque nos faz ver que se trata de uma patologia e não de um universal sobrenatural, onde muitos filmes de terror se acomodam. Uma das cenas mais assustadoras é quando Karsh veste a mortalha, a princípio para observar algum defeito, enxergando o que está sob a pele. Sem tocar em religião, Cronenberg nos faz refletir sobre a finitude das coisas.

O realizador traz alguns temas caros à sua filmografia, como a questão do duplo, presente principalmente em “Gêmeos, Mórbida Semelhança”, com a entrada da irmã da esposa falecida (interpretadas pela atriz Diane Kruger). Ele exibe, ainda, a atração por corpos mutilados (“A Mosca”, “Crash – Estranhos Prazeres”),       presente nos sonhos de Karsh. Os limites entre realidade e delírio também fazem parte da trama.

Toda essa discussão, porém, é atropelada pelo excesso de informações, com o filme apresentando outros caminhos para a história. A partir da segunda metade, “O Senhor dos Mortes” descamba totalmente para a trilha policial, abraçando assuntos como a geopolítica internacional, uma ordem econômica globalizada, o uso de redes para espionagem e ativismo ambiental.

Com isso, o filme perde o foco, deixando de lado o rico debate existencial para enveredar em investigações enfadonhas, que poderiam apesar servir de pano de fundo. O objetivo do diretor talvez seja não criar uma resolução punitiva, do ponto de vista religioso, apontando o próprio ser humano como o maior dos problemas, mas a necessidade dessas explicações é mal costurada e excessiva.

(*) O repórter viajou a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo