Com o “coração na boca”, a impressão era que “tudo aquilo tinha acontecido ontem”, quando ela subia ao palco “como se fosse a última vez, para metralhar a plateia” portando sua voz vigorosa, rítmica e grave, capaz de eliminar as diferenças entre mulher e homem. Ninguém passa incólume à figura andrógina de Maria Alcina, que, aos 75 anos, é tema de dois documentários. 

“Maria Alcina, Alegria Brasil”, da cineasta mineira Elizabete Martins Campos (responsável por “My Name Is Now”, sobre Elza Soares), está em fase de captação. Já “Sem Vergonha” estreou no circuito de festivais e logo estará na grade de programação do Canal Curta!. Alcina assistiu ao longa dirigido por Rafael Saar, pela primeira vez, junto à plateia. 

“Em cada momento aplaudido, cada trecho que surpreendia o público, eu me lembrava do que tinha imaginado ao filmar a cena. A intuição é uma arma muito poderosa, porque a arte é mágica, parece que está tudo pronto e a gente só encarna”, reflete Alcina, que, ao longo do tempo, pautou sua vida pela ação. 

“O espírito tem que estar sempre alerta. Você vai seguindo a intuição e abrindo portas, descobrindo, fazendo, até elas ficarem escancaradas. Eu faço assim até hoje. Não tenho medo. Se tiverem dez pessoas na plateia e eu tiver que cantar em cima de uma lata de querosene num beco escuro, faço como tem que ser feito”, garante Alcina. 

Encontros

Saar descobriu Alcina na infância. Sua família materna era de Cataguases, interior de Minas, terra natal da cantora, onde, aliás, ela deu os primeiros passos na carreira, momento captado no documentário com rara sensibilidade e irreverência. A opção do diretor foi “encenar” a trajetória da protagonista, ao invés de focar a investida cinematográfica em protocolares depoimentos e imagens de arquivo. 

Os dois se conheceram pessoalmente em 2011. Mais tarde, trabalharam juntos na gravação do videoclipe de “Bigorrilho”, que uniu Alcina e Ney Matogrosso, uma das participações especiais do longa, ao lado de nomes identificados com o percurso artístico de Alcina como Edy Star, Antonio Adolfo, Bayard Tonelli e Ciro Barcelos, estes dois últimos ex-integrantes do lendário grupo Dzi Croquettes, que misturava dança e transformismo na década de 1970, período mais repressivo da ditadura militar no país. 

A ideia do filme tomou corpo com a adesão do roteirista Thiago Brito. “O fascínio com a expressão corporal, a voz, a estética, toda a performance de Alcina, e especialmente o lado humano e simples, é o que nos dá o primeiro impulso”, conta Saar, que procura esgarçar “os limites do que é ficção ou documentário”. 

“Acredito que seja tudo cinema, e pensamos num filme que dialogasse com a linguagem de Alcina, de suas referências. Por isso, seguimos um caminho que pode conter inúmeras linguagens, conversar com Carmen Miranda, as chanchadas, o teatro de revista, cinema marginal, desbunde, tudo é transfigurado para contar esta história e mostrar que Alcina continua doida, bonita e gostosa, e criando!”, explica o cineasta, parafraseando o hit lançado pela homenageada nos anos 1980, fase em que ela resgatou canções de duplo sentido do folclore nacional, como a impagável “Bacurinha”. 

Emoção

Durante as filmagens, Alcina foi se “pegando emocionada”. Certo dia, ela ligou para o amigo Fernando Cardoso e “desabou”. “A gente vai fazendo as coisas e não percebe como todos os nossos poros estão envoltos em emoção. Comecei a sentir saudades de casa, da minha família, dos meus irmãos, da minha cidade”, revela Alcina. 

O sentimento a levou de volta para Cataguases, onde Alcina passou uma temporada “curtindo o ambiente, relembrando aquele cafezinho gostoso” que sua mãe fazia. Uma das sequências que mexeram com todo seu ser foi a reconstituição do período em que Alcina trabalhava como operária numa fábrica de macarrão. Em meio à lida cotidiana, ela encontrava um espaço lúdico para dar asas à imaginação e soltar a voz. 

“Eu entrava dentro do carrinho de entregar macarrão, e as meninas em volta de mim falavam que eu estava num carro alegórico. E estava mesmo, ninguém poderia falar que não estava”, diverte-se Alcina. Em “Sem Vergonha”, além de interpretar a si mesma, Alcina também é revivida, sobretudo na juventude, pela atriz Ewä, para quem rasga elogios. 

“Ela incorporou a Maria Alcina de uma maneira impressionante e ficou muito parecida comigo, na cor da pele, na cor do filme, da ideia, de tudo!”, sustenta Alcina, que alude à passagem em que os rostos das personagens se fundem. “Aquilo é muito forte!”, diz. 

Liberdade

O título da produção é uma referência à música de Jorge Ben Jor, gravada por Alcina em 1992, no álbum independente “Bucaneira”, quando ela enfrentava um ostracismo na indústria fonográfica, e regravada em “De Normal Bastam os Outros” (2013), época em que a intérprete foi gradualmente resgatada, após discos renovadores com o experimental grupo Bojo e o eletrizante “Maria Alcina Confete e Serpentina” (2008), vencedor do Prêmio da Música Brasileira nas categorias melhor cantora e CD. 

A perseguição que culminou em um paulatino apagamento de sua presença na mídia começou na ditadura militar, quando Alcina foi proibida de aparecer na televisão ou tocar nas rádios. O baque para quem tinha estourado no Festival Internacional da Canção de 1972, ao faturar a menção honrosa do júri com “Fio Maravilha”, que literalmente sacudiu o Maracanãzinho, não foi pequeno. 

“Ela foi censurada por comportamento, pela sua alegria. Falamos muito sobre artistas censurados na ditadura civil-militar no Brasil, que na música tiveram suas obras e letras proibidas, o que é muito grave, mas Alcina teve seu corpo interditado, e isso afetou sua carreira para sempre”, ressalta Saar, que traça um paralelo com o cenário político atual. 

“Quando vemos o conservadorismo tomando tanto espaço, devemos buscar referências que nos tragam uma luz de como sobreviver e lutar”, conclama. Alcina enaltece a fidelidade do documentário às pedras que ela teve que tirar da vista. “Não tem redenção, e eu acho isso maravilhoso. Foi assim mesmo que se passou, mas eu não estava sozinha”, celebra Alcina, que se percebe “muito viva!”. “Parece que estou começando agora, sigo em frente como se não tivesse feito nada ainda”, finaliza. 

Projetos 

Maria Alcina não para. Entre seus projetos para o futuro próximo há um álbum com músicas da chamada “Turma da Tijuca”, que compreendia Tim Maia, Erasmo Carlos, Jorge Ben Jor e Roberto Carlos. A cantora também está envolvida em parcerias com Heitor D’Alincourt, que compôs especialmente para ela as marchinhas “Extravagantes Celestes” e “O Rei Mandou”, disponíveis nas plataformas digitais. 

Como se não bastasse, ela acaba de gravar com o músico mineiro Itamar Brant, que se inspirou em Alcina para criar a inédita “Alcinômetro”. Por fim, a artista pretende lançar as trilhas dos filmes “Sem Vergonha” e “Alegria Brasil”, e não descarta dedicar um trabalho ao repertório de compositores iconoclastas que admira, como Jards Macalé, Tom Zé, Walter Franco e Rogério Skylab.

“O que me inspira são os compositores que estão sempre me chamando para trabalhos novos! Nunca parei e nunca vou parar, me sinto renovada porque a gente é assim, a gente se enturma, encontra todo mundo, abraça as pessoas e elas gostam desse meu jeito”, gargalha Alcina, sem disfarçar a alegria. 

Já Rafael Saar, diretor de “Sem Vergonha”, tem na mira produções cinematográficas em que se debruça sobre as trajetórias de Baby do Brasil, em empreitada iniciada há 15 anos, e Tetê Espíndola. “Também pretendemos realizar sessões especiais em cineclubes e espaços onde, num sonho, Maria Alcina possa fazer apresentações musicais na sequência da exibição do filme”, arremata.