Ao andar pelas ruas ou entre uma conexão e outra nos aeroportos, Zezé Motta se emociona com a reação daqueles a sua volta. “Sinto um respeito muito grande das pessoas, me tratam como rainha, às vezes até como uma entidade. É impressionante”, maravilha-se.
Mas a bem da verdade é que não é de se estranhar esse tipo de comportamento do público. Dona de um astral solar e de um sorriso inconfundível, Zezé tornou-se um ícone da representatividade negra ao calcar uma sólida carreira na TV e no cinema, especialmente em uma época em que tais posições eram pouquíssimo ocupadas por pessoas pretas.
Agora, a atriz, cantora e ativista desponta em um novo lugar. Do alto de seus 80 anos, ela desmistifica qualquer inverdade de que a mulher octogenária não tenha mais desejos, sonhos e força para fazer o que bem entender. A idade, aliás, fez com que ela se sentisse mais à vontade consigo mesma.
“Me sinto mais livre agora, desencanei com tudo, sofro menos, me sinto também prestigiada. Depois dos mais de 70 anos, tenho sido mais procurada que antes. Acho que muitos convites que surgem vêm como uma homenagem pelo que construí”, reconhece. E um desses convites veio por meio do Elas Festival, que começa nesta quinta-feira (3), em Belo Horizonte, celebrando a produção artística e cultural de mulheres.
Zezé participará do bate-papo “Menopower: A Potência das Mulheres 50+”, nesta quinta, ao lado das jornalistas Cláudia Lima e Fabiana Almeida. “Hoje o fato de ter em 80 anos e estar em plena atividade tem despertado interesse das pessoas”, observa. Na conversa, a artista vai falar sobre seu trabalho, propósitos e visões de mundo. Na ocasião, também será exibido o filme “Deixa”, de Mariana Jaspe, que tem atuação da atriz.
“Ganhei alguns prêmios com este filme. Foi desafiador, sim, pois o meu personagem tinha um caso de amor com um rapaz que tinha idade para ser meu neto. Eu gostei muito de ter feito e não esperava toda a repercussão que deu. Foi um presente, fiquei feliz”, recorda Zezé, que completou oito décadas de vida em junho.
“Virar uma mulher octogenária no Brasil é uma vitória, e eu consegui”, comemora a artista. Zezé Motta, porém, não só alcançou os 80 anos, como chegou na idade mais ativa do que nunca. Em 2024, ela gravou o filme “Por Um Fio”, de David Schurmann, baseado no livro de Drauzio Varella; atuou na cinebiografia “Mauricio de Sousa – O Realizador de Sonhos”, de Pedro Vasconcellos; e protagonizou “A Carta de Esperança Garcia”, filme de Douglas Machado que conta a história da primeira advogada negra brasileira.
“Não posso falar ainda sobre esses trabalhos, mas o que posso dizer de ‘Por um Fio’ é que é um filme bastante forte. Faço uma paciente oncológica em estado terminal, foi bastante difícil”, elabora.
Em paralelo à carreira de atriz, Zezé segue trabalhando na música. Em 2025, ela pretende rodar o país em uma turnê que celebra suas 80 primaveras e adianta também que “vem disco novo por aí.” Musa inspiradora de “Tigresa” (1977), clássico de Caetano Veloso, a artista tem passado por diferentes cidades, BH inclusive, com o show “Coração Vagabundo”, no qual interpreta canções do baiano.
“Faixas como ‘Luz do Sol’, ‘O Ciúme’, ‘Odara’, ‘Esse Cara’ e ‘Sampa’ fazem parte do repertório. O público ama. Tem também ‘Tigresa’”, conta. Em tom confessional, a artista comenta que ficou “tímida com a ideia” de que Caetano tinha feito uma música especialmente para ela. “Até que um dia eu abri o jornal, e lá estava dizendo que Caetano Veloso havia pensado em mim quando escreveu a música. Realmente, sempre imaginei que as unhas negras da tigresa eram minhas”, ressalta, enunciado uma recordação.
“Eu pintava as minhas unhas com um esmalte preto comprado na Boutique Biba, em Ipanema, quando esmaltes coloridos ainda eram raridades, em meados dos anos 1970. Fazia o estilo exótico, com os cabelos curtinhos e batom também preto. Só não trabalhei no Hair, nem namorei Caetano [diz, fazendo referência à letra da música]. Em 2015, aconteceu esta grande surpresa: Caetano disse para o Nelsinho (Nelson Motta) que fui uma de suas inspirações nessa música. Até então se dizia que a Sônia [Braga] tinha sido a fonte inspiradora dos versos. Quase tive um treco! Foi um presente lindo. Não posso reclamar da vida, não é?”, celebra.
‘Qual o problema de uma mulher 70+ ter tesão?’
Na avaliação de Zezé Motta, a sociedade é muito cruel com os idosos, porque é “muito triste” observar como o etarismo tira muitas oportunidades de “homens e mulheres depois de uma certa idade.” Com oito décadas de vida, ela também percebe que há um preconceito grande quando uma mulher, da idade dela, fala sobre seus desejos e realizações amorosas. “Quando eu conto que, com 80 anos, ainda me relaciono e namoro, as pessoas ficam assustadas. Sou uma mulher saudável, me cuido. Qual o problema de uma mulher 70+ ter tesão?”, questiona.
A artista destaca que é primordial que mulheres mais velhas expressem suas vontades livremente. “Passei a infância em um colégio interno, onde cedo me foi ensinado que meninas tinham de ser protegidas dos homens – até em casa, eu era orientada pela minha mãe a não ficar com pouca roupa, apesar do calor do Rio, cidade onde fui criada. Sempre encarei a nudez com muita naturalidade. Nunca deixei isso me reprimir. A minha primeira vez foi aos 21 anos, sou da década de 1940, isso era normal… Acho muito natural uma mulher com mais de 70 anos querer transar, beijar na boca, ter uma vida sexual. Uma pena que as pessoas ainda se choquem”, aponta.
Ao longo de uma “trajetória muito dura, mas cheia de sabor”, Zezé precisou enfrentar muitos estigmas, como o da sexualização de sua personagem Xica da Silva, protagonista do filme homônimo de Cacá Diegues, lançado em 1976. “Quando eu passei no teste para o filme, saiu numa revista chiquérrima: ‘Quem passou no teste para fazer Xica da Silva é feia, porém exuberante.’ E eu olhava para a foto, assinada pelo Antonio Guerreiro, e me achava tão bonita. Mas por conta da coisa sensual, eu e Sônia Braga, que, naquele ano, estourou com o filme ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, viramos símbolos sexuais”, relembra.
Devido ao sucesso de Xica da Silva, Zezé teve seu nome associado à personagem por muito tempo. A atriz queria ser reconhecida pelo próprio nome, mas hoje identifica a grandeza de seu papel. “Nas ruas, todos me reconheciam e me chamavam de Xica, mas depois percebi que era uma dádiva. Não dá para falar da minha carreira sem falar de Xica da Silva. A projeção que ele me proporcionou também fez com que eu pudesse avançar como militante do movimento negro”, salienta.
Ela também se sente honrada por ser um símbolo de representatividade negra para diferentes gerações de artistas pretos. “Essas homenagens são importantes porque significam o reconhecimento de uma batalha para construir uma carreira. Iniciar uma carreira em qualquer segmento é difícil e mantê-la é mais complicado, ainda mais com os conflitos que temos, sejam eles de gênero ou de cor. Agradeço a Deus todos os dias por ter batalhado e conseguido. Vejo com naturalidade ser uma referência para esses jovens negros e negras. A gente está aqui neste mundo para se unir. Assim como tiveram pessoas que me ajudaram, acredito ser importante fazer algo pelos outros. Não ser generoso com o próximo é antinatural para mim. Não faço mais do que meu dever em dar minha contribuição para virar esse jogo”, destaca.