É impossível não se lembrar de "Iracema - Uma Transa Amazônica" (1974) ao ver Murilo Grossi percorrendo as estradas de "Mambembe", ao lado de atores amadores. O filme de Fábio Meira, cartaz desta sexta-feira (22) no Forumdoc.BH, também trabalha essa linguagem híbrida, entre a ficção e o documentário, mas de uma maneira mais pessoal.
Até porque Meira não quer apenas falar do Brasil de uma época, o do início dos anos 2000, quando a arte circense ainda transitava pelos recônditos do país, mas também enveredar por sua própria história, homenagear o pai e retomar aquilo que se vislumbrava como fracasso - um filme paralisado no meio, por falta de recursos financeiros.
Neste ponto, quando Meira retoma a trama do filme antigo dentro de outro, documentando e analisando todo o processo, vem à mente "Cabra Marcado para Morrer" (1984) e "Santiago" (2007), quando uma produção não viabilizada ressurge anos depois, por um novo olhar, a partir da inexorável e bem-vinda passagem do tempo.
Tornam-se evidentes o ímpeto inicial e o sentimento de incompletude, agora revistos por um amadurecimento natural, como se aquele tempo inerte fosse necessário para o filme encontrar o seu caminho. É disso que "Mambembe" trata principalmente, sobre algo que se transforma e ganha um significado, com a salutar espera de um ciclo que possa se fechar.
Como em "Santiago", há em "Mambembe" uma sensação perene de saudosismo, quando o fulgor juvenil de Meira, recém-saído da universidade de Cuba, o leva a encarar tudo com certa coragem e arrogância. O diretor não esconde o carinho por seus personagens, especialmente os vividos pelos atores amadores saídos do circo.
Mesmo havendo um claro desequilíbrio de interpretação entre eles, já que, aparentemente, não passaram por nenhum tipo de preparação (hoje tão comum), Meira deixa claro que o filme ficcional é apenas um pretexto para radiografiar histórias reais. Grossi e Dandara Guerra parecem mais como fantasmas, destoando do "outro filme".
Grossi e Dandara não expõem suas dificuldades ou opiniões - há muito pouco deles em cenas de bastidores. A beleza de Dandara, filha de Cláudia Ohana e Ruy Guerra, cria um choque à "feiúra" de todo aquele universo decadente. A história de amor não é crível, mas isso é um detalhe diante da captura de atenção promovida por tamanha vivacidade.
Há uma precariedade, evidente nas folhas rasuradas do roteiro e nos obstáculos inerentes a uma pequena produção, mas ela é mais fruto de um necessário aprendizado, nos fazendo perceber a evolução de Meira como pessoa e profissional, a ponto de ele ter uma compreensão mais nítida do início de sua jornada.
Não é muito diferente do João Moreira Salles de "Santiago", que filma seu peculiar mordomo, mas sem a certeza do que que fazer com o material, que exige uma decantação até poder virar filme. E do Eduardo Coutinho de "Cabra Marcado de Morrer" vem a curiosidade de rever seus personagens e entender o que se passou.
A diferença é que "Cabra Marcado" tem um forte laço histórico (a atuação das ligas camponesas na Paraíba dos anos 60). O corte violento ocorre em função da ditadura militar. O freio de "Mambembe" não é político, embora seja possível ver um Brasil ali, exibidor de uma vontade de se abrir para novos lugares. Hoje, seus personagens se mostram confinados, resignados.
A estrada é o que dá um sentido de movimento que, muitas vezes, as histórias por si não dão conta - robustas, mas fragmentadas. Madona Show e Índia Morena são as Iracemas de "Mambembe". Como a prostituta do filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, elas vivem à margem de uma cultura em franco declínio, completamente desamparadas pelo Estado.