"A alteridade é o grande antídoto contra o fanatismo que a gente vê impregnado no mundo hoje em dia", avisa o diretor Marcelo Gomes, ao comentar um ponto importante que percorre a narrativa de "Retrato de um Certo Oriente", em cartaz nos cinemas. "(Precisamos ter) respeito ao que é diferente, se colocar no ponto de vista do outro e entender que é diferente do seu", salienta.

Na trama do filme, baseado no livro "Relato de um Certo Oriente", publicado em 1989 por Milton Hatoum, três imigrantes libaneses vivem uma relação tempestuosa, devido a conflitos religiosos, na viagem de navio que os leva para a região amazônica, na década de 40. Ao chegarem no país, se envolvem com os povos originários e passam a vivenciar com intensidade essa mistura cultural. 

"São cristãos maronitas se encontrando com libaneses muçulmanos, que se encontram com italianos e a população indígena da Amazônia. É um grande encontro de alteridade de uma forma radical", assinala Gomes. Para o cineasta pernambucano, é a "síntese de desejo de utopia com as religiões podendo viver harmoniosamente", um tema em evidência com o conflito israelense-palestino.

O realizador já havia promovido esse tipo de encontro cultural em "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005), em que um alemão e um sertanejo viram parceiros de estrada, também na década de 40. O estrangeiro chega ao Nordeste para fugir da Segunda Guerra, assim como em "Retratos", e percorre a região vendendo aspirinas e exibindo filmes. A história foi baseada nos relatos de viagem do tio-avô de Gomes.

Ele cita uma cena de "Retratos", quando os personagens fazem suas preces, em prol da cura de um personagem. "Cada um reza pelo Deus dele e está todo mundo em comunhão ali. Ninguém que tem fé irá ferir outro ser humano. Isso não faz sentido em nenhuma religião. O que a gente construiu nesse filme é que existe uma possibilidade  de um respeito e de uma convivência pacífica. É isso que o mundo quer", observa.

Para o filme, Gomes escalou atores libaneses para os três papéis principais:  Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel e Zakaria Kaakour. "Isso traz uma verdade muito grande, sem risco de cometer erros sobre a cultura libanesa. Muito importante tê-los o tempo todo no set", destaca. O mesmo vale para os índios da etnia Tucano que integram o elenco e buscaram preservar a língua e os rituais deles.

"Foi um longo processo de ensaios, porque a gente sempre ensaiava em inglês ou francês. E, muitas vezes, quando eles falavam na língua deles, a forma de saber que a cena estava boa era através dos olhos deles. Alguém já disse que os olhos são as janelas da alma. Se eu visse verdade nos olhos, eu já estava feliz", detalha Gomes, que foi alertado por seu elenco estrangeiro sobre aspectos comuns entre Brasil e Líbano.
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Tem muito da cultura libanesa na nossa cultura. A gente desconhece esses elementos.  Meus atores detectaram isso na culinária. É muito curioso detectar isso, porque nós, brasileiros, somos uma junção de várias culturas", pondera. O realizador ousou ao evitar se deixar fascinar pela beleza da região amazônica e apostou numa fotografia em preto e branco, tirando de cena o verde exuberante da floresta.

"Faço um cinema de personagens. Quando eu penso na fotografia, na trilha, nos sons, eu sempre penso no interior dos personagens. Quais são os dramas deles, o sentimento interior. O fato de filmar em PB é porque é o ponto de vista de Emilie que estou mostrando. E ela tem medo da Amazônia ao chegar à região. Então a gente trocou os cinquenta tons de verde pelos 50 tons de cinza", explica.

"Retrato de um Certo Oriente" estreia nas salas num momento muito especial do cinema brasileiro. quando "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, se aproxima de dois milhões de espectadores. "O filme do Walter é magnífico, profundo, político e necessário. Ele resgata esse encontro do público brasileiro com seu cinema. Agora a gente está chegando em números pré-pandêmicos. É a retomada maravilhosa de um espaço", vibra.