Há mais de 20 anos, o escritor e pesquisador Luiz Morando faz tudo sempre igual. Ao menos é o que acontece uma vez por semana, quando, atrás de vestígios da história LGBTQIAPN+ em Belo Horizonte, ele vai à Hemeroteca Histórica – que reúne as coleções especiais da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais no terceiro andar do espaço – e lê, folha a folha, edições completas de todos os jornais publicados em uma data específica de um arco temporal que, inicialmente, ia de 1946 a 1954, depois, se estendeu para até 1969 até que, finalmente, passou a abranger um período maior, de 1917 a 1989.
“É um trabalho braçal, que executo sozinho e sem nunca ter tido o interesse de buscar financiamento, seja público ou privado”, resume o pesquisador e escritor, que, fruto desse obstinado projeto, já publicou dois livros: “Paraíso das Maravilhas: uma história do crime do Parque” (2012), que investiga a sociabilidade gay no Parque Municipal de BH nos anos de 1940 a partir de um crime que marcou o imaginário da época, e “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte” (2020), sobre uma personagem que viveu nos arredores dos bairros Bonfim e Lagoinha entre 1950 e 1980, e que hoje seria entendida como uma combativa travesti, mas que, em vida, não pôde ter essa identidade reconhecida.
Em mais um desdobramento desse disciplinado esforço, o autor, agora, está preparando uma série de cinco volumes intitulada “Inventário das vivências dissidentes de sexo-gênero em Belo Horizonte”. A publicação de estreia, “Farrapos e resíduos: vivências dissidentes em Belo Horizonte (1946-1959)”, deve ser lançada no próximo ano. Os demais livros, ainda não nomeados, já têm uma cronologia definida: o segundo se ocupa de um período que vai de 1960 a 1969, o terceiro, de 1970 a 1979, e, o quarto, de 1980 a 1989. Já no quinto e último título, Morando retroage para um período anterior: de 1917 - quando a capital tinha apenas 20 anos - até 1945.
O conjunto da obra, diz ele, é amarrado por um tema central: a história e constituição da sociabilidade LGBTQIAPN+ em Belo Horizonte. “Nessa série, tento entender como essa experiência foi sendo construída na cidade”, determina, indicando que, como nas publicações anteriores, os novos trabalhos devem permanecer pautados pela independência editorial – um valor inegociável para o escritor. “Gosto de fazer meu trabalho no meu ritmo. Não quero ter que me sujeitar a prazos, cobranças e imposições ou sugestões de mudanças de estilo de escrita”, pontua.
Um trabalho braçal
Quando classifica sua pesquisa, feita ao longo de cerca de duas décadas, como um “trabalho braçal”, Luiz Morando não está recorrendo a uma simples figura de linguagem. Nas idas semanais à Hemeroteca Histórica, além de virar, página por página, as mais diversas publicações – incluindo jornais de longa ou curta duração, comerciais ou independentes, de grande ou pequena tiragem, de bairro ou de circulação Estadual, com viés noticioso ou de humor –, ele sempre transcreve todo o conteúdo que tenha alguma relação com o universo LGBTQIAPN+.
“Quando são (reportagens) maiores, fotografo para transcrever em casa. Quando são menores, transcrevo a mão e depois digito tudo no notebook”, explica. O conteúdo, então, é organizado em pastas, por décadas, o que permite que um cruzamento de informações, montando, gradualmente, um quebra-cabeça que lhe permite visualizar como, ao longo do tempo, pessoas heterocisdivergentes se relacionaram entre si, com outras populações e com a própria cidade.
E montar esse quebra-cabeça está longe de ser uma tarefa fácil. Para começar, encontrar as peças é, por si, um desafio. Encaixá-las é outro. Muitas, afinal, parecem defeituosas, contaminadas de preconceitos da época. “Alguns desses textos vão registrar essa população via humor, maledicência, deboche e sátira”, detalha Luiz Morando, acrescentando que os jornais, por vezes, eram muito discretos e tímidos para falar sobre a sociabilidade dissidente de sexo e gênero, recorrendo, eventualmente, a expressões mais veladas.
“Tem um texto do José Maria Rabelo, criador do jornal ‘Binômio’, publicado ainda no ‘Diário de Minas’, que é um bom exemplo. Nele, o autor faz uma espécie de roteiro da vida de BH de 1951. A certa altura, ele fala de uma maneira meio irônica de ‘determinados rapazes’ que, a partir de ‘determinado horário’, apareciam e ocupavam algumas mesas do Palácio do Chopp (um bar de então)”, comenta, lembrando que o texto também traz descrições um quê pejorativas de parte dos frequentadores da boate Chez Nous (1950-1951), que funcionava no Brasil Palace, nas imediações da praça Sete.
Sobre o Palácio do Chopp, José Maria Rabelo registra: “Frequentam-no, principalmente, os músicos de rádio, de dancings e boates, os que nós incluímos entre os que dão ‘duro’ para ganhar a vida. Há, de contrapeso, no mesmo local, toda uma fauna de figuras estranhas, muito próprias das cidades que já se consideram grandes. Estes são facilmente identificados, por um detalhe típico e marcante: a cabeleira. São os homens dos penteados mais bem feitos da Capital”. Em seguida, o autor volta-se à Chez Nous. “Houve em certa época uma boate, abafada e sem móveis, incrustada no 8º andar de um de nossos edifícios, onde se reunia a nata do tal círculo de amantes do belo. E ali, à meia-luz, e ao som de vozes langorosas, esses sonhadores esqueciam-se da vida, mergulhados num mundo onde os preconceitos sociais eram meras sombras sem maiores consequências”.
Diversidade sempre habitou o hipercentro
Os dois estabelecimentos citados na reportagem de 1951 não eram de frequência exclusiva de homens gays e mulheres lésbicas, como esclarece Luiz Morando, que passa, imediatamente, a juntar outras peças a essa história: “Essa boate pertenceu a um grupo de teatro amador, o Teatro Mineiro de Arte (TMA). Portanto, era meio natural que esse ambiente atraísse pessoas que gostassem de artes e que tivessem uma melhor aceitação para a convivência com a diversidade”, situa, emendando que um dos atores membros do TMA era Carlos Kroeber, que se tornou ator de televisão. “Nascido em BH, ele atuou em diversas novelas da Globo, era uma figura conhecida e era gay, coisa que ele nunca escondeu de ninguém”, assinala, costurando habilmente um raciocínio que o leva a concluir: “Veja, então, como, nos anos de 1950, já havia a presença de homens gays que não se escondiam, circulando sobretudo na região central da cidade. Pessoas que iam encontrar abrigo, por exemplo, nos bares de Norma Sueli, considerada uma figura importante para o movimento das mulheres lésbicas de BH”.
E Morando prossegue, adicionando outros elementos à história até chegar ao que considera a consolidação de uma cena noturna LGBTQIAPN+ na cidade, que, para ele, passa incontornavelmente pela abertura do Edifício Arcângelo Maletta, no início dos anos de 1960. “Principalmente na virada de 1962 e 1963, quando diversas lojas do prédio são ocupadas por casas noturnas, restaurantes, bares, inferninhos, boates… É lá que vai abrir o primeiro bar de frequência exclusivamente gay, o ‘Nosso Encontro’”, localiza, indicando que, antes dele, além dos já citados Palácio do Chopp e Chez Nous, existiam lugares como o bar ‘Assírio’, na rua Guarani – à época uma região frequentada pela elite –, que até atraia outros públicos, mas, principalmente no cair da noite, era frequentado pela comunidade lésbica.
“Então essa impressão, de quem vem de fora, de que o centro de BH é uma região LGBTQIAPN+ é resultado de um fenômeno histórico, que se manteve ao longo das décadas, e que tem a ver com o próprio desenho da cidade, que foi projetada para ser contida nos limites da Contorno”, arremata, mencionando ter reunido um conjunto robusto de informações que lhe permitem identificar que os principais espaços de sociabilidade heterocisdivergente se davam justamente num perímetro que compreende o entorno das praças Sete, Raul Soares e Rio Branco, que recebia a feira permanente de amostras e, hoje, sedia a rodoviária de BH.
“Na verdade, salvo algumas exceções, toda experiência urbana se dava nessa região até meados da década de 1960, de forma que havia uma camada da população que procurava diversão e lazer nesses lugares em determinados momentos, indo ao cinema, ao teatro ou a determinados bares na mesma região em que, à medida que a noite avançava, era ocupada por outra camada da população em busca de outro tipo de divertimento – mais carnal, erótico e sexual”, detalha, expondo como a diversidade coabitou a cidade.
Nos palcos
Enquanto se dedica ao novo projeto, Luiz Morando acompanha, de certa distância, a adaptação de seu mais recente livro publicado, “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”, para o teatro. A dramaturgia, no caso, está sendo preparada por artistas da plataforma Beijo, formada majoritariamente por pessoas trans e não-binárias. O mesmo coletivo, aliás, foi responsável por levar outra obra do escritor para os palcos com o Projeto Maravilhas, de 2017/2018, que orbita a história narrada por Morando em “Paraíso das Maravilhas: uma história do crime do Parque”.