O dia 7 de novembro pode representar um momento de guinada no cinema brasileiro, que vem colhendo baixas bilheterias ao longo do ano. Com a estreia do infantil “Arca de Noé” e do premiado drama “Ainda Estou Aqui”, o audiovisual nacional concorre praticamente de igual para igual com a produção hollywoodiana. Juntos, ocuparão cerca de 1.500 salas, num circuito exibidor que conta com 3.452, segundo dados da Agência Nacional de Cinema.

“A expectativa é enorme. Tenho falado muito com o Walter (Salles, diretor de ‘Ainda Estou Aqui’), porque, de alguma maneira, ele está nos dois filmes, como produtor artístico do nosso. Antigamente era mais fácil de prever, e agora a gente não sabe mais. Mas torço muito para que seja um momento de virada do cinema brasileiro e talvez do audiovisual brasileiro”, observa Sérgio Machado, diretor de “Arca de Noé” ao lado de Alois Di Leo.

Além das duas estreias e da continuação de “O Auto da Compadecida”, em dezembro, Machado coloca no mesmo bolo as produções para streaming, citando as séries “Cidade de Deus”, já exibida no Max, e “Senna”, prevista para o final do mês, na Netflix. “Um país que não tem cultura, que não tem audiovisual, é uma casa sem espelho, delegando esse lugar de o retratar ao outro – e o americano vai tratá-lo como um estereótipo”, alerta.

Para o realizador, “Arca de Noé” já tem o que comemorar, ao chegar a mil salas em seu lançamento. “É um marco”, sublinha. Alois di Leo, diretor especialista em animação, que assinou o premiado “O Caminho dos Gigantes”, destaca ainda que nenhuma outra produção nacional do formato estreou em tantos cinemas. ‘Lino – O Filme: Uma Aventura de Sete Vidas’ foi lançado com 300 cópias (em 2017). É uma grande evolução”, afirma.

“Arca de Noé” tem em seu time de dubladores Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Alice Braga e Lázaro Ramos, um chamariz de público. Outro nome de forte apelo é Vinicius de Moraes, autor do livro de poemas publicado em 1970 em que a história se baseia – e que também inspirou dois discos e um especial de sucesso na TV Globo, no início dos anos 1980. O filme aposta nesse quê nostálgico, mas sem abrir mão dos espectadores de agora.

“A grande questão é – e nós nunca titubeamos em relação a isso – que estamos falando para um público de hoje. Uma coisa que tínhamos desde a largada é que não queríamos menosprezar a inteligência das crianças. A gente sempre queria falar de temas fundamentais. Era importante falar de aceitação do outro, de tolerância... A arca já é uma metáfora boa, de um planeta que é um lugar limitado e de que precisamos cuidar para não naufragar”, assinala Machado.

Alois define o filme como um “milagre”, devido à grandiosidade da produção. “Tecnicamente, os pontos não fechavam. Na renderização (conversão de uma série de imagens em arquivo visual), fizemos as contas, e estava dando sete minutos o frame. Levaríamos três anos para renderizar o filme, o que nos levou a contratar render fast externo. O filme foi crescendo cada vez mais, e a complexidade só aumentando”, comenta.

Para dar conta de tudo isso, inclusive do lado financeiro, “Arca de Noé” buscou parceria na Índia. “O filme não conseguiria se financiar somente no Brasil. Todas as leis de incentivo e fundos não davam conta dos orçamentos. Então, a gente precisava de uma coprodução. E trabalhar com a Índia foi de igual para igual. Não era um país que nos olhava de cima para baixo, até porque queríamos ter todo o controle criativo”, explica Alois.

Músicas ganham novas versões

Rodrigo Santoro é da geração que se encantou com o especial “Vinicius para Criança: A Arca de Noé”, exibido na Globo em 1980, guardando na memórias as cenas de Milton Nascimento cantando a música-tema e de MPB-4 soltando a voz em “O Pato”. Quis o destino que, quatro décadas depois, ele se encontrasse com essas músicas, mas desta vez entoadas por ele próprio.

“Eu acho que o mais interessante numa animação é o desafio de ter somente a voz para poder transmitir qualquer tipo de sentimento. A voz precisa ser humanizada, ela precisa envolver, ela precisa emocionar e chegar ao espectador. E, para isso, eu acho que sempre tem que acontecer muita coisa por trás da voz. Mas, no caso do ‘Arca’, o maior desafio foi cantar”, confessa.

Um dos momentos de maior tensão foi durante a gravação de “Menininha” – cantada por Toquinho no especial na TV. “Era a música mais difícil de cantar, por ser mais técnica e especialmente por causa dos arranjos, que são contemporâneos. Então, o produtor musical precisou colocar a música em dois tons acima do meu. As notas eram mais agudas, e isso eu precisei trabalhar bastante”.

A música é também aquela de que o ator tem maior lembrança. “Eu me lembro de escutar o disco, me divertir com ‘A Casa’ e ‘O Pato’, mas ‘Menininha” me emocionava muito. E não entendia exatamente aquele sentimento. Hoje, cantando-a e sendo pai de duas filhas, eu me emociono com a mesma força, mas de uma forma diferente, porque agora eu entendo a letra, do ponto de vista de um pai”, revela Santoro.