“Que papel cumprem as companhias oficiais? Para mim, cumprem alguns. Entre eles, apresentar a tradição ao público. Principalmente quando estamos falando de clássicos, que não são fossilizados ou anacrônicos, mas, sim, atemporais”. A proposição é do coreógrafo Luiz Fernando Bongiovanni, que, há algum tempo, reflete sobre o papel que as instituições de arte financiadas pelo poder público devem desempenhar na sociedade.
O assunto, que não é novo no seu repertório, apareceu em uma conversa com Cláudia Malta, assessora artística na Fundação Clóvis Salgado, em 2023. Foi a partir desse encontro que, pela primeira vez, surgiu no horizonte a ideia de montar, na capital mineira, com os corpos artísticos do Palácio das Artes, o espetáculo “Carmen”, de Bizet, um clássico universal da ópera e do balé.
“A Cláudia e a Soninha (Sônia Pedroso, diretora da Cia. de Dança Palácio das Artes) gostaram do projeto, e, a partir daí, começamos o trabalho, pensando, já naquele momento, que seria uma apresentação para fechar o calendário”, cita. Assim, chega amanhã ao Grande Teatro Palácio das Artes a montagem inédita “Carmen – Espetáculo de Dança e Música”.
A peça envolve vários corpos artísticos da fundação, como a Cia. de Dança Palácio das Artes (CDPA), o Coral Infantojuvenil do Palácio das Artes, o Coral Lírico de Minas Gerais e a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. A direção geral e a coreografia do espetáculo, que segue em cartaz até domingo, são de Bongiovanni, a assistência coreográfica é de Vitor Rosa, e a direção musical e regência, de Ligia Amadio.
A escolha do clássico, para o diretor geral, foi um tanto óbvia. Além dos méritos da obra em si e da possibilidade de conjugar a apresentação de um clássico ao debate de temas contemporâneos e urgentes, há ainda o fato de ele ter realizado esse espetáculo em 2018, em uma bem-sucedida experiência com o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, no Paraná, que ele dirige desde 2021.
A montagem que vem para Belo Horizonte, contudo, tem seu ineditismo. “Especialmente para essa apresentação, pensamos em fazer um prólogo com músicas do Bizet, talvez uma das óperas mais populares do mundo. E na sequência vem o balé”, explica. E mesmo essa segunda parte do espetáculo ganhou uma nova roupagem à medida que os ensaios foram acontecendo. “Eu trabalho com o artista que está na minha frente. E, como estava lidando com um elenco muito criativo e propositivo, eu e o Vitor (Rosa, que assina a assistência coreográfica) tentamos nos aproveitar ao máximo dessa potência”, pontua Bongiovanni.
Na etapa inicial, portanto, entram em cena o Coral Infantojuvenil, o Coral Lírico e a Orquestra Sinfônica, sob a regência da maestrina titular Ligia Amadio. Juntos, eles executam três árias da ópera que se tornaram clássicas: “L’amour Est un Oiseau Rebelle”, também conhecida como “Habanera” – na verdade, é um gênero musical e uma dança cubanos, interpretados por Carmen –, “Toureador” e “Seguidilla”.
Na segunda fase, a Companhia de Dança sobe ao palco apresentando a versão de “Carmen” de Rodion Shchedrin, compositor russo que reescreveu o clássico operístico a pedido de sua esposa, a primeira bailarina Maya Plisetskaya, que desejava interpretar a personagem. A estreia ocorreu em 1967 no Teatro Bolshoi, em Moscou. “Ele se coloca como parceiro criativo do Bizet, 200 anos depois, revisitando a obra a partir de novos arranjos para uma orquestra de cordas e percussão”, explica Bongiovanni.
Clássico, atemporal e urgente
Originalmente, “Carmen” é uma ópera em quatro atos de Georges Bizet, com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseado no romance homônimo de Prosper Mérimée. A montagem estreou em 1875, no Opéra-Comique de Paris, e não foi bem recebida pelo público e pela crítica. Talvez, pelo vanguardismo dos temas de que tratava, com uma protagonista mulher que não se submete à vontade masculina e luta para definir o seu próprio destino.
A obra apresenta a história da personagem-título, uma cigana que, vivendo na Espanha do século XIX, desperta a paixão e, depois, a possessividade de Don José, um oficial que deserta do exército para viver com ela. Quando Carmen o rejeita e se apaixona pelo toureador Escamillo, o ex-militar implora para reatarem e a ameaça. Ela, contudo, não cede, preferindo morrer a deixar de ser livre.
Notadamente, portanto, o clássico dialoga com temas em relevo na contemporaneidade. “Com o mundo mudando, estamos finalmente dando visibilidade a problemas que antes ficavam embaixo do tapete, como a questão da misoginia, dos preconceitos. E, neste espetáculo, conseguimos aliar algo atemporal a um convite à reflexão sobre um tema importante na atualidade: o feminicídio”, ressalta Luiz Fernando Bongiovanni, ao falar de uma questão urgente no Brasil.
Ele lembra que, segundo dados do Mapa da Violência, na comparação mundial, o país é o quinto com a maior taxa de feminicídios – termo que se refere aos assassinatos de mulheres em razão da condição feminina. “A situação é alarmante e reflete a realidade de uma sociedade doente”, critica.
Para o coreógrafo, além da necessidade de falar sobre o assunto por um viés cognitivo, isto é, abordando o tema em si, didaticamente, é também importante tratá-lo no terreno do artístico – “para alcançar a ordem do sentimento”. “Quando a gente sente essa dor, essa tristeza, quando a gente embarca nessa tragédia, nos damos a chance de reformar um pouco nossas percepções e modificar comportamentos”, avalia, reconhecendo ser um romântico que acredita no poder transformador das artes.
Expectativa
“Fui bailarino do Balé da Cidade de São Paulo e, lá, tínhamos a Cia. de Dança do Palácio das Artes como uma instituição irmã. Nós admiramos muito o trabalho que era feito aqui. Depois, fui para a Europa, onde fiquei por 10 anos. Voltei, virei coreógrafo e, depois, diretor do Balé Teatro Guaíra. Em nenhum momento deixei de olhar com admiração e respeito para o que era feito aqui. Por isso tudo, claro, estou muito feliz de trabalhar com esse grupo”, repassa Luiz Fernando Bongiovanni.
Para a apresentação, reconhece ele, as expectativas são altas. “Quero que as pessoas tomem um susto, porque é um projeto muito potente esteticamente, que tem força visual e sensorial. Além disso, é um balé que tem uma narrativa, que conta uma história, aproximando o público – e eu gosto disso. Então, estou muito curioso para saber como isso vai bater no público”, admite.
SERVIÇO:
O quê. Carmen – espetáculo de dança e música
Quando. De quinta-feira (19) até domingo (22), às 19h
Onde. Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1.537, centro)
Quanto. A partir de R$ 20 (meia)