Diante de uma obra “em plena floração”, a sensação da jovem militante estudantil formada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo era de “pioneirismo”. “A canção popular não tinha ainda espaço na crítica brasileira, e sobre o jovem compositor não havia o que, na Teoria Literária, se chama de ‘fortuna crítica’, isto é, um conjunto significativo de textos críticos sobre o autor”, relembra Adelia Bezerra de Meneses, que, na ocasião, havia escolhido a obra de Chico Buarque como tema de sua tese de doutorado na USP, sob orientação do célebre professor Antonio Candido (1918-2017), no “finzinho da década de 1970”.
Em 1982, Adelia publicou “Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque”, fruto de seu esforço em “estudar a já considerável produção do artista como um todo, abordando necessariamente o conjunto e desenhando o movimento geral da obra”. Muita coisa mudou de lá para cá. Aos 80 anos celebrados em junho, Chico tornou-se um cânone tanto em sua área de origem – a música –, quanto da literatura, tendo recebido das mãos do presidente Lula, em 2023, o renomado Prêmio Camões, considerado o mais importante da língua portuguesa.
Discípula
Em “Chico Buarque ou a Poesia Resistente”, recém-lançado pela Ateliê Editorial, Adelia dá a sua significativa parcela de contribuição à efeméride, ao analisar as letras das canções mais recentes do compositor, como “Que Tal Um Samba?”, “As Caravanas”, “Sinhá”, “Tua Cantiga”, “Massarandupió”, dentre outras. Se agora Adelia já não precisa mais “tirar” as letras “a partir da escuta dos discos tocados numa vitrola” para transcrevê-las à máquina, como no caso de uma edição datilografada com as obras completas de Chico até o início da década de 1980, permanece “o modo de trabalhar” da autora, que, segundo ela, “nunca irá mudar”. “Dada a minha filiação intelectual, como discípula do Antonio Candido, encaro as produções literárias como engendradas de um solo cultural, dentro do recorte das relações entre Literatura e Sociedade”, pontua.
Em relação ao personagem de suas investigações, Adelia salienta “a altíssima qualidade de sua produção, que o tempo não fez empalidecer”. “É impressionante como Chico continua criando obras-primas, a ponto de se originar uma dificuldade quando, por exemplo, jornalistas perguntam quais ‘as 5 canções mais significativas’. Como, cinco? Eu nunca consigo me limitar a esse número, ele tem dezenas de obras-primas. E quando, um tempo mais tarde, fazem a mesma pergunta, sempre há alguma canção de safra recente a se agregar ao elenco. Chico tem uma capacidade de traduzir, em palavras, emoções, sentimentos e situações humanas de alto tônus afetivo que só os grandes poetas conseguem. Não apenas no nível individual, mas no da sociedade”, reforça.
Remotas e recentes
Adelia se vale de canções que analisa no novo livro, como “Tua Cantiga” e “Renata Maria”, para exemplificar como Chico “continua a ser um inapelavelmente lírico cantor do amor e do feminino”, capaz de “dar voz aos excluídos”, como em “Sinhá”, e seguir fazendo “uma crítica social contundente, embora mascarada pela ironia” no caso de “As Caravanas”, que ela define como “um épico doloroso do século XXI, que aponta o racismo nessa sociedade que teve a escravatura como mola do seu processo de formação social”. Por fim, a caçula da lavra, “Que Tal Um Samba?”, de 2022, “alude aos tempos de ‘ignorância’, ‘borrasca’, ‘derrota’, ‘demência’ do período presidencial anterior”, delineia Adelia, recuperando expressões presentes na letra.
Na opinião da crítica, “há um tema que vem se impondo no cancioneiro buarqueano”. “Que é a questão da negritude, o tema do racismo estrutural brasileiro, em canções que abordam não apenas a questão dos escravizados, mas do excluído no seu viés de resistência, que aludem ao negro não apenas como vítima, mas como produtor de cultura, como sujeito do processo cultural”, observa.
A essa perspectiva, a publicação agrega canções “remotas” que vieram “puxadas por um fato recente”. Adelia conta que, após a morte de Antonio Candido, “o grande professor, crítico literário e pensador do Brasil”, descobriu-se, entre seus papéis, “um texto inédito, emocionado e entusiasmado”, intitulado “Martírio e Redenção”, onde, em “meia página datilografada, o grande mestre fala do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), à luz das ideias de Euclides da Cunha em ‘Os Sertões’”, livro-reportagem de 1902.
“Como eu achava que esse texto devia ser publicado, e como as idéias lá desenvolvidas têm tudo a ver com as canções que integram o livro ‘Terra’, do Sebastião Salgado, fiz questão de analisar ‘Levantados do Chão’, ‘Assentamento’ e ‘Fantasia’, acompanhadas de fotos que nos foram cedidas”, diz Adelia, citando composições de Chico que vieram encartadas em CD na publicação promovida por Salgado. Ela acrescenta o fato de, em março de 2024, terem sido comemorados os 40 anos do MST. “E eu quis juntar-me às celebrações, divulgando esses textos que emanam utopia, algo de que estamos carecidos no mundo atual”, justifica.
Lirismo e resistência
Outra peça temporã incluída no livro, “na esteira de acontecimentos do presente”, e que, não por acaso, o encerra, é “Tempo e Artista”, lançada por Chico em 1993, segundo Adelia “de inequívoca atualidade, levando-se em conta a comemoração dos 80 anos do Chico e sua esplêndida criatividade”. Os versos falam por si só: “O velho cantor, subindo ao palco/ Apenas abre a voz, e o tempo canta (...) No anfiteatro, sob o céu de estrelas/ Um concerto eu imagino/ Onde, num relance, o tempo alcance a glória/ E o artista, o infinito”. No capítulo dedicado a ela, a canção serviu de núcleo agregador para outras que tematizam o tempo, como “Roda Viva”, “Essa Menina” e “Todo Sentimento”.
Ao batizar o lançamento de “Chico Buarque ou a Poesia Resistente”, Adelia pretendeu passar “vários recados, sendo o primeiro uma homenagem ao autor, cuja obra de cancionista é ‘poesia’ de alto quilate que resiste ao tempo, não envelhece, perdura”. “Mas, sobretudo, eu retomo a qualificação que fiz, no meu livro de 1982, da obra de Chico como ‘poesia resistência’”. A “referência explícita” é ao termo cunhado pelo crítico literário Alfredo Bosi (1936-2021), “que tem um capítulo assim intitulado no seu livro ‘O Ser e o Tempo da Poesia’, em que ele fala de a poesia ser ‘uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes’, reiterando o estatuto da grande poesia, de não duplicar a ordem social reinante, mas romper com ela”, proclama.
Para Adelia, “o grande poeta vai sempre revelar um radical não colaboracionismo”. “Lírica é ruptura, a gente lê também em (Theodor W.) Adorno. De fato, toda literatura é, quer queiramos quer não, engendrada de um solo cultural, histórico, social, político. No entanto, em tempos adversos como o nosso, nunca a grande poesia duplica valores e a ideologia dominantes”, complementa. A estudiosa avalia que “a sociedade em que vivemos se apresenta como um mundo massificado, homogeneizado, de exploração generalizada, com a globalização concentracionária campeando, de consumo e obsolescência programada, sociedade das mídias sociais e da desinformação criminosa”, e abre caminho para questionamentos.
“Como poderia a grande poesia ser de adesão? Que caminho lhe resta senão a resistência? O poeta será sempre, como já escreveu Castro Alves, ‘o caminheiro que tem saudades de um país melhor’. Há mais, dizer o afeto numa realidade social adversa, em que até as emoções são terceirizadas, é resistir”. Essa última observação a permite adentrar na polêmica em torno de “Tua Cantiga”, parceria com Cristóvão Bastos gravada por Chico em 2017, que foi acusada de machismo por setores da esquerda, ressuscitando a noção de “patrulha ideológica” cunhada pelo cineasta Cacá Diegues na década de 1970.
Polêmica
“Mais uma vez, avulta a estridência do politicamente correto, por parte dos patrulheiros de plantão, que não entenderam nada. Lembro-me de o Chico contar que, quando compôs ‘Mulheres de Atenas’ (de 1976), foi censurado porque o refrão dizia ‘mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas’. Como poderiam essas mulheres, tão submissas, servirem de exemplo? A escuta apressada não conseguiu nem perceber a ironia”, provoca Adelia.
Em relação a “Tua Cantiga”, ela destaca dois pontos a serem observados. “O primeiro é que o ‘eu lírico’ ou ‘eu poético’ não é idêntico à pessoa física do autor, pois, a seguir nesse rumo, nenhum ficcionista, por exemplo, poderia fazer um romance narrando um crime, pois seria considerado criminoso. Será que a realidade é só tecida das boas práticas? O eu lírico é uma construção”, vaticina.
Em seguida, Adelia sustenta que “essa canção, que ilustra o lado inapelavelmente lírico do Chico cantor do amor e do feminino, filia-se, enquanto tom e postura emocional, não falo do aspecto formal, a uma ‘Cantiga de Amor’, (tipo de composição literária) entroncada no Trovadorismo, em que a dama era a ‘senhora’ absoluta do trovador, que a serviria de joelhos, assim como no rito da vassalagem era de joelhos que o súdito firmava o juramento de fidelidade com o suserano. Há aqui um código amoroso em paralelo com um código político do mundo medieval”, contextualiza a pesquisadora.
Adelia prossegue em seu raciocínio com o auxílio de entendidos da área. “Dizem os estudiosos que o amor cortês implica, por parte do ‘amador’, uma paixão avassaladora, que não conhece regras nem leis, aliás, há um traço necessariamente anti-matrimonial nesta ligação. Efetivamente, existe um código amoroso em tela, ou melhor, uma codificação cavalheiresca, que tem que ser reconhecida para se iluminar com o devido foco esse texto, e que torna anacrônicas as investidas de uma pauta moral da atualidade”, postula. “Por detrás dessa relação aqui desvendada, necessariamente paira a sombra do adultério. Só fora dos quadros do casamento institucional, encarado como aliança de interesses outros que os afetivos, esse amor poderia existir”.
A escritora recorre ao suíço Denis de Rougemont (1906-1985), que em seu clássico livro “História do Amor no Ocidente”, constata que, “como o casamento havia se tornado para os senhores feudais um simples meio de anexação de terras e incorporação de heranças, o amor cortês opõe uma fidelidade independente do casamento, fundada exclusivamente no amor”. “Instaura-se um paradoxo, pois, em nome do amor, descarta-se o casamento. Dessa perspectiva, o ‘largo mulher e filhos’ (trecho da letra de Chico que incomodou feministas) é metáfora do amor absoluto, avassalador, que infringe regras e vibra numa experiência afetiva levada ao limite”, reflete Adelia, que arremata a disputa com a observação de um detalhe sagaz. “Mas o autor nos advertira disso tudo, já a partir do título, ‘Tua Cantiga’”, sublinha.
Música e literatura
Adelia faz questão de ressaltar que, ao se deter sobre as canções de Chico, atua como crítica literária. “Não tenho formação musical, insisto em dizer que abordo as letras das canções. Na canção, letra e música vêm junto, entranhadamente pactadas, e a música também é produtora de significado, tanto é assim que, nos meus textos, sempre apelo para a memória musical do leitor. Mas essa junção de melodia com letra não é um fenômeno contemporâneo, desde a mais remota Antiguidade a poesia vinha amalgamada com a música, lírica é a poesia acompanhada ao som da lira”, posiciona.
De acordo com ela, “não só na Antiguidade grega, também na Idade Média, na época do Trovadorismo, menestréis e jograis cantavam suas composições, originalmente acompanhados seja pela lira, harpa ou alaúde”. “Pois bem, hoje em dia são os textos escritos que nos possibilitam entrar em contato com essas maravilhas de produções, e lidamos só com as letras, enquanto poemas. A Ilíada e a Odisseia eram cantadas pelo aedo, mas hoje só temos o texto escrito”, compara.
Ao mesmo tempo, Adelia considera que “nem todas as letras de canção suportam o tratamento de poesia”. “No caso de Chico, que tem uma relação com a palavra que é de grande força, isso é possível. Na realidade, eu trato suas letras como poemas, utilizando todos os recursos da crítica literária, privilegiando a análise estilística e a leitura ideológica”, afiança, sem resistir a mais uma provocação. “E uma última observação, meio de brincadeira, meio a sério. Você fala em ‘analisar canções, logo obras musicais’, e eu pergunto, provocando, por que não ‘analisar canções, logo obras literárias’?”.
Passado, presente e futuro
Retomando o questionamento feito a seu mestre Antonio Candido, impelido a sintetizar Chico Buarque e sua obra numa única frase, e que se saiu com a imbatível “uma grande consciência, inserida num enorme talento”, Adelia encara o mesmo desafio no capítulo cinco de seu novo livro, e declara: “Uma observação final: a poesia-resistência desse ‘poeta social’ de poderosa coerência que é Chico Buarque acontece num encontro – que é a sua marca – de uma postura ética com uma esplêndida elaboração estética’”. “Creio que é uma maneira de endossar o que formulou Antonio Candido, dizendo quase que a mesma coisa, em outros termos. Finalizando, acho que o Chico mereceria ter o seu nome indicado para o Nobel de Literatura”, defende.
Inquieta, Adelia está com um novo livro “quase que terminado, sobre atualizações de mitos da Odisseia em textos atuais”, onde compara “Partida do Audaz Navegante”, conto de Guimarães Rosa (1908-1967), com a relação do casal mítico Penélope e Odisseu. Noutro ponto, retoma “o motivo temático das sereias, episódio da épica”, em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector (1920-1977), e “O Silêncio das Sereias”, de Kafka (1883-1924), e acaba “tratando até da ‘pós-verdade’ que estigmatiza a política e a vida social dos dias de hoje”. “Lá eu falo do Brasil contemporâneo, pois acho que só vale a pena a gente se debruçar sobre o passado quando é para se entender melhor o presente”, opina.
No livro, claro, há espaço para Chico Buarque, que comparece com um conto “que revela precocemente a sua vocação de ficcionista”, intitulado “Penélope”. “Mas espero que Chico venha a compor muitas e muitas canções que nos forneçam a deixa para falar do feminino, do amor, do Brasil, que aumentem o patrimônio de sensibilidade brasileira que ele ajudou a construir”, projeta Adelia, que, ainda uma jovem militante estudantil, “tendo estabelecido as balizas” de uma bibliografia então inexistente após a sua estreia no mercado literário, sentiu-se “livre para publicar análises de canções esparsas, ou de grupos de canções analisadas comparativamente, como é o caso das de temática feminina, que engendraram posteriormente o livro ‘Figuras do Feminino’, e que, em se tratando de Chico Buarque, vem amalgamado com o tema do amor”.
Autodenominada “leiga em música”, ela percebe, como os especialistas no assunto, “um refinamento do aspecto melódico” nas últimas canções de Chico, que se tornaram “mais difíceis de serem cantadas e caírem na boca do povo”. “Creio que elas estão mais sofisticadas melodicamente, e, portanto, mais difíceis de serem cantaroladas”. O que não impediu “Que Tal Um Samba?” de se transformar numa espécie de hino do desafogo e da esperança que marcaram o retorno de um metalúrgico ao Palácio do Planalto.