Se olhar para o lado de dentro da sala de cinema, algum espectador mais afortunado poderá se deparar com Matheus Nachtergaele se divertindo e se emocionado com a sua mais recente criação: João Grilo, personagem que volta às telonas a partir desta quarta-feira (25) na continuação de “O Auto da Compadecida”, um dos maiores sucessos da cinematografia brasileira.
Na sala escura, em dia de confraternização natalina, o ator estará cumprindo uma promessa feita ainda durante as filmagens. “Já sabia que iria haver essa tentativa de estrear no Natal e eu disse: ‘Tá, eu vou passar o Natal com as pessoas, onde eu estiver. Não faria sentido se fosse diferente. Quero estar junto com as famílias. Vai ser o meu Natal”, afirma Nachtergaele, em entrevista a O TEMPO.
Ele está tão envolvido com o lançamento do filme que, mesmo após uma longa maratona de entrevistas, foi capaz de falar por mais de 15 minutos ininterruptos sobre o retorno das aventuras de João Grilo e Chicó, vivido pelo mineiro Selton Mello, passado um quarto de século do filme baseado na peça de Ariano Suassuna. O momento não poderia ser mais oportuno, segundo o ator.
“Nasce em meio a um monte de efemérides bonitas – 25 anos de feitura do primeiro, bodas de prata da peça, dez anos do encantamento de Ariano. E agora está sendo lançado no dia de Natal, uma data disputadíssima pelo cinema americano e que só conseguimos porque era o ‘Auto’. É uma data linda de celebração para a família toda, e o ‘Auto’ é isso, exemplo de grande respeito à brasilidade”, registra.
Antes de ser convocado novamente para o papel, Nachtergaele confessa que sua relação com o personagem do nordestino ladino já tinha ganhado outra configuração. “Eu tinha me tornado um espectador de João Grilo. Eu não o via mais com um olhar crítico ao meu trabalho, avaliando o resultado da minha performance. Eu assistia e gargalhava como qualquer brasileiro”.
O ator ressalta “a honra de participar dessa versão e a alegria” que ele e Selton Mello tiveram “ao encarnar esses personagens icônicos”. Mesmo que os números oficiais não comprovem, Nachtergaele não titubeia em dizer que o primeiro “Auto” é o filme mais assistido pelos brasileiros. “Não tem ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’. Não tem ‘Cidade de Deus’. Não tem ‘Tropa de Elite’. ‘Auto’ é o filme de cabeceira dos brasileiros”.
Para ele, João Grilo e Chicó são os maiores personagens cômicos da dramaturgia brasileira, “porque obedecem às leis armoriais criadas por Suassuna, ao fazer do homem simples o herói das histórias e enobrecê-lo”. “É dar ao homem simples voz, graça, em todos os sentidos, e coroá-lo com um lugar na alta cultura mundial”, citando o movimento que valorizou as artes populares nordestinas na década de 1970.
“O movimento armorial é um pouco parecido com o antropofágico e depois com o tropicalismo. Ele é um antecessor de todos esses movimentos. É usar o que há de melhor na cultura mundial, engolir isso tudo e vomitar brasilidade”, reflete. Tamanho valor artístico tornou a empreitada de fazer uma sequência cinematográfica, a partir de histórias originais, um grande desafio.
“A responsabilidade era muito grande para Selton e para mim. E para Guel (Arraes, diretor das duas versões) principalmente. Porque a gente não quer substituir ou refazer o clássico. E também não é um caça-níqueis. É uma homenagem. A gente pensou bastante antes de topar fazer”, revela.
“A gente achou que era importante lembrar, para nós mesmos, esse momento luminoso de nossas vidas. Era a chance de reviver personagens icônicos, os maiores já escritos no Brasil. A dúvida pairou até a pandemia, quando decidimos fazer. Quando a pandemia acabasse, daríamos esse presente para nós e para o Brasil”, lembra. O ambiente cultural e político do país também pesou na balança.
Nachtergaele comenta que "Auto 1" nasceu prenunciando a retomada do cinema nacional, levando os brasileiros a fazerem as pazes com a produção nacional. “Ele inaugurou, de maneira muito premonitória, a ligação da TV com o cinema. Mas, principalmente, era um lembrete de como é bom ser brasileiro. E antecipava as primeiras eleições do Lula”, recorda.
E completa: “(O filme) Celebra e participa de um amor muito grande que o Brasil tinha por si, durante a virada do milênio. A gente ainda tinha muitos planos para ser um Brasil com S, lembra? E íamos apostar todas as fichas nisso. Durante um tempo, isso deu certo. Depois as coisas, por causa das convulsões no mundo e do ser humano, que é doido, a gente esqueceu um pouco disso”, lamenta.
Sem debochar de pessoas simples
Matheus Nachtergaele adianta algumas novidades em “O Auto da Compadecida 2”, principalmente em relação à dramaturgia. “Passados 25 anos, você vai encontrar diferenças não só na idade, mas na maneira como João Grilo e Chicó são. A questão dos poderes muda um pouco de endereço. No primeiro tínhamos o clero corrupto, os maus patrões e o coronelismo. Aqui a gente mantém um coronelismo já decadente, mas também tem o poder das mídias, representado pelo dono da rádio local”.
O respeito à brasilidade se percebe, segundo o intérprete, no fato de ser uma comédia que nunca debocha das pessoas simples. “Tenho visto muitas comédias de sucesso em que o homem simples é jogado numa situação à qual não pertence e passa por vexame, e isso faz rir. Isso nunca é assim em Ariano, nunca será assim em Guel. E nunca eu deixaria isso acontecer com o Grilo”, explica.
“Não é para rir do Grilo, é para rir com o Grilo. É para rir dos poderosos, das discrepâncias sociais. É para rir dos cacoetes dos ricos, não dos pobres”, destaca. Nessa construção, há personagens que retornam, como o cangaceiro vivido por Enrique Diaz e a namorada de Chicó (Virginia Cavendish), e estreantes. Entre as caras novas estão Eduardo Sterblitch e Taís Araujo, que faz a Compadecida (papel que era de Fernanda Montenegro no filme anterior).
Apesar dos novos ingredientes, o clímax é semelhante ao do primeiro. “Como é um auto, um homem simples será levado a julgamento no céu. Desta vez, João Grilo terá a sua melhor advogada na pele de uma Nossa Senhora preta, muito brasileira, telúrica e silvestre, mais próxima dele do que antes. Mas não será acusado nem julgado por deuses externos a ele. Será julgado pelo bem e mal que existem em cada um de nós”, assinala.
Nachtergaele se diz pronto para receber avaliações menos calorosas, mas é incansável ao fazer um alerta sobre possíveis comparações com o primeiro. “Todo mundo é um pouco dono do ‘Auto’, e estou bem preparado para receber as críticas. Vou recebê-las com bastante amor e ouvi-las com atenção. Mas lembrem-se: não é ‘Auto 1’. Esse é um filme eterno. ‘Auto 2’ é a cereja de um bolo que se chama ‘gostar de ser brasileiro’”, avisa.