Ao telefone, Jorge Ben Jor é simpático, capaz de passar uma hora do outro lado da linha, desde que não se incorra em assuntos pessoais. “Ele cisma com algumas coisas, tem aquela excentricidade do gênio, e nunca gostou de falar da sua vida particular”, conta a jornalista Kamille Viola, autora de “África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou para Toda a Gente Ver” (2020), que conseguiu a façanha de entrevistar o astro duas vezes, a primeira pessoalmente, em 2011, no restaurante do Copacabana Palace, para onde ele se mudou pouco antes da pandemia de Covid-19, permanecendo hospedado por lá. 

Recentemente, o artista recusou, pela terceira vez, tornar-se enredo do Salgueiro, sua escola de samba, supostamente por superstição, no que Kamille acredita. “Acho que ele vai ficar bem bravo se ler o meu livro”, admite ela, que descobriu a idade do músico, um dos segredos mais bem guardados por Ben Jor até então. Há meio século, em 1974, ele lançou, aos 35 anos, “A Tábua de Esmeralda”, marco absoluto da discografia brasileira. Das doze faixas, dez receberam regravações, de nomes como Caetano Veloso, Gal Costa, Marisa Monte, Zé Ramalho, Fernanda Abreu, Emílio Santiago, etc…

Líder do grupo Mundo Livre/SA, Fred Zero Quatro aprendeu a tocar todas as músicas do álbum. Aos 12 anos, ele ganhou o seu primeiro violão, graças ao fascínio despertado pela “alquimia” de Ben Jor. “Meu pai tinha um vozeirão, era muito afinado e gostava de cantar, principalmente depois que tomava duas doses de uísque”, relembra Fred.

Mais chegado ao estilo seresteiro de Nelson Gonçalves, o patriarca não era lá muito fã de Ben Jor, mas, como todo o país, não pôde ficar indiferente ao estouro de “Mas Que Nada”, na estreia do garoto prodígio, em 1963, “uma das músicas brasileiras mais executadas mundo afora, com versões do Black Eyed Peas a Miriam Makeba”, como pontua o pesquisador e crítico musical Paulo da Costa e Silva, que publicou, pela Cobogó, um número sobre “A Tábua de Esmeralda”, para a coleção “O Livro do Disco”.

“De cara, o Ben Jor fez muito sucesso, vendeu mais de 100 mil cópias, e teve que lidar com a pressão de continuar jogando o jogo do mercado, ou seja, como ele era sinônimo de lucro, tinha que atender as expectativas do que seria um disco comercial”, observa Paulo, para quem “A Tábua de Esmeralda”, não por acaso o trabalho favorito do anfitrião, representa “a primeira vez que ele colocou na praça um projeto que tinha um significado autoral mais profundo, amarrado com a ideia de alquimia, uma de suas paixões de juventude”.

“Essa relação com o mundo medieval aparece o tempo todo na obra do Jorge, com os santos guerreiros e todo aquele universo inventado. Na verdade, ele não se interessa muito pelo factual, é a invenção que conta”, atesta o pesquisador.

Fascínio

A gravadora do cantor produziu, em 1973, um LP espertamente batizado de “10 Anos Depois”, recuperando o êxito inaugural do contratado. Fisgado pela coleção de sucessos, o pai de Fred Zero Quatro adquiriu “A Tábua de Esmeralda” na mesma loja. O álbum teve direito a um clipe no “Fantástico”, em que Ben Jor e os músicos apareciam com vestes típicas de alquimistas, incluindo estantes recheadas de poções esfumaçadas e um exótico time de dançarinas, ao qual Fred só teve acesso outro dia, pelo YouTube. “Fiquei alucinado na época! Eu não tocava nada, mas, de tanto decorar as letras e tentar reproduzir aquelas levadas com a mão, meu pai prometeu que, se eu passasse com a média no colégio militar, ganharia um violão ao final do ano”, recorda.

Capa do LP ‘A Tábua de Esmeralda’, lançado por Jorge Ben em 1974

Resistindo às pressões de uma família conservadora, Fred venceu o desafio e se encaminhou para a música. Quando abriram-se as portas da indústria fonográfica para o Mundo Livre/SA, em 1994, a referência era explícita, tanto no título do álbum, “Samba Esquema Noise”, que recuperava o “Samba Esquema Novo” de Ben Jor, quanto na faixa “O Rapaz do Bonezinho Preto”, uma homenagem a “O Homem da Gravata Florida”, canção em que o ídolo demonstrava sua admiração por Paracelso, um dos mais conhecidos alquimistas da história, e cuja notável elegância virou lenda musicada.

“Muita gente ainda pensa a alquimia como uma química meio rudimentar, mas, para uma vertente, ela é uma metáfora para o desenvolvimento espiritual. O chumbo seria a nossa alma, que pode se transformar em ouro”, sublinha Kamille Viola. Prática comum na Idade Média, envolta numa aura de mistérios, “até porquê, se você realizasse trabalhos tido como espirituais que não fossem católicos, poderia ser considerado herege e pagar com a própria vida”, diz Kamille, a alquimia almejava encontrar a “pedra filosofal” que garantiria a imortalidade e a cura de diversas doenças. Ao carregar essa temática para a música popular, Ben Jor dobrou, inclusive, a antipatia do temido crítico musical José Ramos Tinhorão (1928-2021), que definiu o álbum como “originalíssimo”.

“O ‘Tábua de Esmeralda’ tem um universo mítico, filosófico e oriental, que, na época, me parecia novidade, nossos grandes compositores não costumavam transitar por aí”, concorda Mauro Ferreira, responsável por um blog especializado em crítica musical. A capa do disco evidenciava essa condição, ao reproduzir figuras encontradas pelo alquimista Nicolas Flamel (1330-1418), em um almanaque sobre o tema.

Flamel é “O Namorado da Viúva” citado na letra que repercute uma lenda descoberta por Ben Jor, em suas peregrinações por redutos clássicos de alquimistas em Paris, ao lado de Gilberto Gil. “Errare Humanum Est”, expressão em latim para o verso de Santo Agostinho, “errar é humano”, leva o ouvinte “do passado medieval para o futurismo”, como salienta Paulo da Costa e Silva: “Ben Jor mistura temas com a sua lente própria”.

Liberdade criativa

Nesta conclusão estaria “o princípio e paradoxo da alquimia, de retirar da impureza uma coisa íntegra, que, portanto, apresenta um grau de pureza”. “Entendo que ‘A Tábua de Esmeralda’ tem importância mais pela unidade do que por ter produzido grandes hits. A força do repertório está no conjunto”, avalia Paulo, segundo quem, “tudo vira tema para Ben Jor, de personagens específicos da mitologia alquimista, passando pela questão negra, o futebol, as musas, deuses e astronautas”.

Editor do site Phono, Alexandre Biciati vai na mesma linha. “Com base em experiências pessoais e muita leitura, Jorge Ben passeia por histórias e personagens como o mítico Hermes Trismegisto, o alquimista Nicolas Flamel, além de Zumbi dos Palmares e até extraterrestres. Um misto de referências que permeiam a literatura fantástica e os mistérios da vida na terra, misturando a negritude e o culto ao feminino”, afiança Biciati.

Para Paulo, “o resultado é essa amálgama, como se ele tivesse colocado tudo num cadinho e feito ouro”. Enquanto “Zumbi” versa sobre a escravidão, “Brother” ecoa o gospel norte-americano e a luta pelos direitos civis dos negros. “Surfando na maré da contracultura”, que trouxe à voga o misticismo presente em “Tim Maia Racional” e “Gita”, de Raul Seixas, Ben Jor concebeu um álbum “menos feito para o presente do que para ficar suspenso no tempo”, assinala Paulo, recorrendo ao personagem Aleph, do argentino Jorge Luis Borges, que viveria numa dimensão de temporalidade superior. 

“O álbum não tem nada de datado, a gente escuta atualmente e ele parece mais contemporâneo do que muitos discos da música contemporânea”, complementa ele. Parte disso estaria na sonoridade acústica, conjugando a “estética percussiva do violão de Ben Jor à orquestração de cordas e coros, que nunca soa clássica”, sob os arranjos de Paulinho Tapajós (1945-2013).

De acordo com Mauro Ferreira, “A Tábua de Esmeralda” é “o último disco calcado no violão” do compositor. O “gosto pelos acordes menores” teria nascido de sua experiência no seminário, “ao aprender os cantos gregorianos”, enfatiza o escritor Paulo da Costa e Silva. Em “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”, abertura propositadamente circular da empreitada, o historiador Luiz Antônio Simas flagrou a presença de um toque de terreiro na harmonia.

Som

Professor de Música da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Bim Bom: A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto” (1999), Walter Garcia gosta de comparar “A Tábua de Esmeralda” com “África Brasil”, lançado dois anos depois, em 1976, quando “Zumbi” recebeu uma versão eletrificada na guitarra. No registro original, “o suingue dessa canção nos faz pensar que é por meio da alegria e da afirmação do corpo negro que Ben combate a memória do escravismo e a segregação de pessoas, vale reiterar, negras. Em ‘África Brasil’, a canção se torna ostensivamente agressiva”, analisa. Para Garcia, “A Tábua de Esmeralda” seria “a última estação” de uma estrada que começou em “Samba Esquema Novo”, com o protagonismo de seu violão peculiar.

“O violão é aquela marca, tem o jeito único, com as afinações específicas do Ben Jor”, reforça Kamille Viola, que, numa das conversas com o cantor, ficou sabendo que a Praça da Bandeira, no Rio, era um ponto de contato com ovnis. “O Ben Jor tem um misticismo muito arraigado, ele acredita que há vida em outros planetas, e eu também acredito. Não faz sentido, em um universo desse tamanho, só existir a gente”, declara.

Ao se deparar com Ben Jor depois de abrir um show para o ídolo de infância, o músico pernambucano Fred Zero Quatro, “com algumas cachaças na cabeça”, não se conteve, e perguntou o que ele tinha usado “para criar aquelas músicas psicodélicas e surreais”, que davam novo sentido para o “experimental, sendo ousado e pop ao mesmo tempo”.

Imperturbável, Ben Jor relatou, calmamente, sua temporada francesa, quando chegou a encontrar alquimistas, o que o impulsionou a gerar o álbum conceitual. “O Ben Jor é completamente abstêmio e conservador em relação a drogas, só bebe uma taça de champanhe no réveillon”, informa Kamille. Paulo da Costa e Silva argumenta que o principal legado de “A Tábua de Esmeralda” pertence à “sua mensagem de liberdade”.

“Se o Jorge Ben podia fazer um disco falando de alquimia, um tema ligado à Idade Média e ao Renascentismo, distante do nosso cotidiano, e com excelência, então os limites da liberdade artística eram ampliados para se falar e criar sobre tudo”, arremata.