Os alquimistas, o homem da gravata florida, Zumbi, o namorado da viúva e Jesus Cristo. Todos eles estão chegando, como anuncia Jorge Ben (na época sem o acréscimo do Jor – esta, aliás, outra questão interessante, que remete à circularidade do título de “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”, com o retorno final do início de seu nome) no LP “A Tábua de Esmeralda”, lançado em 1974, há 50 anos. A ideia de movimento é uma constante ao longo das faixas do disco, em termos quase apocalípticos. Após a revelação da chegada dos alquimistas, em tom triunfal, o compositor aponta: “Lá vem o homem da gravata florida”, esticando as sílabas da frase.
A canção sempre foi a predileta do crítico musical Pedro Alexandre Sanches, ao representar “uma lufada de luz por cima das tendências da música e do Brasil na época ao soturno e ao depressivo”. “Jorge Ben é um dos meus antídotos pessoais mais eficazes contra as depressões da vida”, conta o jornalista paranaense, radicado em São Paulo. A mais intrigante para ele, no entanto, permanece sendo “O Namorado da Viúva”, em que Ben Jor repete o recurso presente em “O Homem da Gravata Florida”...
“O que mais me intriga e enternece é ele falar ‘namomorarado da viúva’, aparentemente para fazer a frase caber na melodia, o que revela a liberdade não só da personagem, mas também do autor, que na música pode esticar, encurtar e duplicar sílabas como bem entender, ao seu e ao nosso bel prazer”, afiança Sanches, que ressalta a “celebração ao feminino que é quase feminista, se é que homens podem ser feministas, com um retrato respeitoso e amoroso de uma mulher, digamos, ‘assanhada’, namoradeira, livre”, complementa ele, extasiado com tal relacionamento…
Muito antes da passagem do namorado da viúva, a sondagem do espaço é o que há de vir, clarificada na celestial cantiga batizada em latim, “Errare Humanum Est”, com sua derradeira contagem regressiva. Ao que se segue a “Menina Mulher da Pele Preta”, em diálogo direto com “Minha Teimosia, Uma Arma pra Te Conquistar”, ambas de conotação afetiva, em que insônia e sedução se revezam, na expectativa do desenlace romântico. “Eu vou vencer pelo cansaço”, declara o eu lírico obstinado e inconformado com o agora, projetando um futuro mais aberto e pleno de felicidade. Por sinal, o próprio álbum inspira essa condição, encontrando seu espaço peculiar na discografia…
“Sei que ele vendeu bem à época, mas me parece que seu resultado é retroativo, cresceu exponencialmente com o passar das décadas e a compreensão mais profunda do tamanho imenso do Jorge na música brasileira. Apesar de ser anterior à adoção da guitarra e ao abandono do violão, o que é um assunto delicado, acredito que ele sabe disso, tanto que, em 2004, fez aquele álbum que esqueço o nome agora, em nítida referência ao ‘Tábua’”, comenta Sanches, referindo-se a “Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum)”, em que o latim volta a dar as caras, e que comportou, no repertório diversificado e heterogêneo, a homenagem ao eterno craque, “O Nome do Rei É Pelé”.
A ligação umbilical de Ben Jor com o futebol também repercute em “Eu Vou Torcer”, onde a espera é pela paz, pelo amor, pelas coisas bonitas. O que abre as comportas primaveris para que chegue “Magnólia”, e “numa nave maternal dourada/ muito veloz, feita de um metal miraculoso/ com janelas de cristal e forro de veludo rosa”. Retorna o futuro no horizonte, a utopia que mira o inalcançável. Pois o passado há de chegar para redimir nossos erros atávicos, como sustenta “Zumbi”, em desvelada ameaça: “Eu quero ver/ Quando Zumbi chegar/ O que vai acontecer”. E como Salvador nunca é demais, “Brother” estende flores e música a Cristo, irmão e amigo, em clima profético…
“Eu diria que, 50 anos depois, o grande legado desse disco é propriamente musical. É a alquimia sem paralelos que Jorge forjou na época da pilantragem e da tropicália em diante, é a fusão corajosíssima que hoje chamamos de samba-rock, é a abordagem apaixonada do samba sem medo da modernidade e sem pagar pedágio para o passado, é o hedonismo de ‘O Homem da Gravata Florida’ misturado com a consciência racial de ‘Zumbi’”, exalta Sanches, que tem se debruçado sobre textos que redimensionaram a sua percepção sobre o álbum, com conclusões que o surpreendem.
“Por exemplo, o fato de que os alquimistas citados no ‘Tábua’ pertencem, cada um, a um século diferente, não são todos da Idade Média, como meu coração romântico da época pensava. Fiquei pensando que, se é um alquimista por século, Jorge Ben certamente é, ele próprio, o alquimista do século 20 e/ou 21? E, mais cedo ou mais tarde, vai acabar sendo reconhecido universalmente como tal. Que personagem esplendoroso, o autor da ‘Tábua de Esmeralda’”, constata.
A ponto de desmentir toda nossa tese até aqui com as faixas que encerram o clássico, quando “Hermes Trismegisto e Sua Celeste Tábua de Esmeralda”, cujo título é sussurrado na forma de um precioso segredo, e “Cinco Minutos” interrompem o movimento à frente e se voltam ao passado. Ou, talvez, o enigma seja mais denso: o que houve é o que há de vir, circularmente…, como Jorge Ben Jor… Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas…