Ítalo Calvino define os livros clássicos como aqueles “que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado.” Evidentemente, o escritor italiano se referia à literatura, mas não é inconcebível estender seu raciocínio também a obras do cinema e da música.

Afinal, o que é bom resiste ao tempo – vide que “O Poderoso Chefão” continua sendo o melhor filme de todos os tempos, mesmo após 52 anos de sua estreia, segundo a revista “The Hollywood Reporter, e que “Garota de Ipanema”, lançada em 1962, seja a música brasileira mais gravada até hoje. 


Mas como as novas gerações, já nascidas na era digital e mais preocupadas em rolar a tela de seus smartphones em busca de conteúdos rápidos, se interessarão pelos clássicos ou por qualquer outra obra que não seja contemporânea?

A resposta não carece de rodeios: pelas próprias redes sociais. É cada vez mais comum que pessoas nascidas entre 1997 e 2010 descubram no Tiktok e no Instagram livros, filmes e músicas que sequer sabiam da existência. E não somente. Deixem de lado seus celulares para se debruçarem sobre elas.


Um dos exemplos mais recentes desse fenômeno aconteceu quando a tiktoker norte-americana Courtney Henning Novak fez uma resenha, de pouco mais de um minuto, do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicado por Machado de Assis, em 1881.

“Preciso ter uma conversa com o pessoal do Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito?”, fala no vídeo, que já acumula mais de 1, 2 milhões de visualizações. Após o viral, a obra tornou-se a mais vendido na categoria de “Literatura Latino-Americana e Caribenha”, na Amazon dos Estados Unidos. 


Por aqui, o trecho que abre a publicação (“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”) virou meme ao ser recitado por pessoas com diferentes sotaques do Brasil, sendo o do Rio de Janeiro um dos mais hilariantes, diga-se.

@silvairjunior Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas, por @Baueny Barroco #fyp #machadodeassis #bauenybarroco #memoriaspostumasdebrascubas #brascubas #fy #literatura #booktok #trend ♬ som original - Baueny Barroco

Outro caso de uma produção que “explodiu” após um complicado de trechos, chamado de edit, ser divulgado nas redes foi o filme “Bingo: O Rei das Manhãs”, que acumula quase 17 milhões de visualizações somente no X (antigo Twitter) desde a sua publicação, em dezembro do ano passado.

Vladimir Brichta em ‘Bingo: O Rei das Manhãs (2017)’ pic.twitter.com/YFWWKX56LI

— lu (@scfimoon) December 30, 2023


Os views na publicação renderam frutos inimagináveis para o diretor do longa-metragem, Daniel Rezende. “Provavelmente, muito mais pessoas assistiram ao ‘Bingo’ desde a viralização do trecho do que em toda carreira do filme no cinema e no streaming”, elabora o diretor. “Bingo: O Rei das Manhãs” foi lançado nos cinemas em 2017, e, cinco anos depois, chegou ao streaming pelo Max.

“O Letterboxd [plataforma on-line de reviews de filmes] foi meu grande termômetro, porque, depois desse edit, os comentários sobre o filme mais que dobraram por lá. O ‘Bingo’ se beneficiou dessa cultura, é impressionante”, celebra Daniel.


Algo semelhante aconteceu com a minissérie “Hilda Furacão”, que foi ao ar na TV Globo pela primeira vez em 1998. A produção, baseada na história do mineiro Roberto Drummond, estreou no Globoplay em 2019, mas seus acessos cresceram vertiginosamente depois que trechos da série viralizaram neste ano no Tiktok. De tanto aparecerem cenas da minissérie em seu perfil na rede social, a estudante Kamilly Aparecida de Oliveira Coelho, de 16 anos, acabou ficando curiosa por assistir à produção completa no streaming.


“Se não fosse por essas redes [Kamilly inclui o Instagram], não saberia da existência desse conteúdo”, acredita a jovem. Ela conta que surpreendeu com a série, especialmente por não se assemelhar com as montagens contemporâneas. “A série é bem diferente das novelas dos dias de hoje. Gostei muito dela e acredito que foi uma ótima indicação. Quase todas as coisas que eu assisto, leio e escuto são de influências das redes sociais”, revela. 


O influenciador Andrey Penalva Cardoso Barreto, de 20 anos, foi um dos que contribuiu para o crescimento de “Hilda Furacão” fora do Tiktok. Dono do perfil Barretos Edits (@barretoedits), com cerca de 2,5 milhões de seguidores, o sergipano postou um vídeo com um compilado de cenas em que Ana Paula Arósio aparece arrasadora na pele de Hilda.

@barretoedits a maior! 💕 #anapaulaarosio #chericherilady #hildafuracao #edit #foryou #hildaemalthus ♬ som original - barretoedits

A gravação, de pouco mais de 20 segundos, já foi exibida nove milhões de vezes e recebeu mais de 4.200 comentários, dentre eles “Eu adolescente assistindo e amando ‘Hilda Furacão’” – a classificação etária é 14 anos.


“Eu me sinto muito orgulhoso em fazer parte de um dos editores que trouxe a série ‘Hilda Furacão’ para o mundo dos edits e ressalto a importância da Globoplay nesse projeto de resgatar e digitalizar minisséries e novelas de seu acervo. Isso vem revitalizando e formando uma comunidade de jovens mais interessados na cinematografia brasileira”, evidencia.

Nascido seis anos depois que a produção foi ao ar, Andrey mesmo nunca tinha ouvido falar nesta figura emblemática de BH. “Me chamou bastante atenção o fato de duas grandes estrelas (Ana Paula Arósio e Rodrigo Santoro) estarem presentes na obra”, conta. Em seu perfil, além de trechos de produções cinematográficas, ele posta entrevistas antigas com diferentes artistas. “Muitos jovens me dizem que descobriram artistas como Modern Talking, A-ha e até a Xuxa por meio dos meus vídeos e começaram a gostar deles”, aponta.


Relação paradoxal da internet


Por mais que “Bingo: O Rei das Manhãs” tenha crescido depois de viralizar, o diretor da película, Daniel Rezende, ainda se surpreende com o poder que a internet tem de provocar reações, a princípio, opostas.

“Costumo dizer que só existe uma coisa, que é o paradoxo. É incrível como uma geração que não consegue focar sua atenção em algo por muito tempo consiga parar para assistir a um filme longo. Isso só demonstra a força de uma obra, que só se sobressai porque tem qualidade”, analisa Rezende.


Criador do perfil O Saudosista (@osaudosista), em que compartilha trechos de filmes, séries e clipes que fizeram sucesso entre 1980 e início dos anos 2000, o influenciador Ben-Hur Tavares concorda com Rezende.

“Músicas e filmes bons são atemporais. Eu gosto de fazer vídeos que aproximem as gerações. Ao mesmo tempo que o meu público com mais de 50 anos está vendo uma edit do Alain Delon com música da Lana Del Rey, o meu público com menos de 20 anos vê uma edit do Jacob Elordi ao som de Careless Whisper, dos anos 80”, revela. 

Com quase dois milhões de seguidores, Tavares conta que criou o perfil justamente por se interessar por produções antigas, mesmo tendo apenas 24 anos. “Sempre tive a intenção de resgatar a essência da nostalgia de décadas passadas (anos 80, 90 e 2000), as quais sou apaixonado pela cultura e pela estética. Comecei querendo trazer o senso coletivo de saudades por aquilo que já vivenciamos”, acentua.

 

@osaudosista evolução de tom selleck (1980-2024) #nostalgia #tomselleck #evolução #evolutionchallenge #80sthrowback #magnumpi #anos80 #fyp #viral #80s #friendstvshow #carelesswhisper ♬ Careless Whisper - George Michael