Aborto, epidemia, racismo, troça à religião. Ao leitor afobado, essas temáticas podem parecer até contemporâneas, mas foram tratadas por Machado de Assis (1839-1908) no século retrasado, quando grassava o longínquo ano de 1881, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, onde o protagonista, embora morto, repassa os mais insignificantes, e, ao mesmo tempo, reveladores aspectos da patética existência humana: filosofa sobre a importância do nariz para o destino da espécie e o papel das vestimentas na manutenção do apetite sexual, entre várias outras proezas e peripécias.
Retirada de escolas da rede pública pela Secretaria de Educação de Rondônia em 2020, que, na época, alegou “conteúdo inadequado às crianças e adolescentes”, recuando mais tarde do posicionamento, a obra-prima machadiana, um dos clássicos da literatura brasileira, alcançou, em maio, o topo da lista dos mais vendidos na categoria ficção latino-americana e caribenha da Amazon, depois que a influenciadora norte-americana Courtney Henning Novak o divulgou, com indisfarçável entusiasmo, em seu TikTok, dedicado à resenha de livros, o que o apresentou a uma nova geração.
“Parece-me que o fato de Machado, com ironia e humor, com sua ‘pena da galhofa’, tratar de uma sociedade, despistada em questões familiares, que grita em relação às diferenças de classe, sendo esse motivo principal uma repetição de tantos romances que, em última análise, tratam da condição humana, acena para um número considerável de leitores”, analisa Márcia Morais, professora de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que relembra o fato de o livro ter recebido outras três traduções para a língua inglesa, em 1952, 1955 e 1997. “Ou seja, o texto atravessou quase um século, e o contexto sociocultural parece recuperado, pois foi também muito bem recebido por esses leitores estrangeiros”, complementa a docente.
Paradoxo
O movimento de aparente aclamação exterior e censura interna coloca a obra de Machado no centro de uma polêmica recente, no posto de paradigma dessa percepção da qual, no entanto, Vanessa Brandão, professora de Comunicação da UFMG e pesquisadora da subversão na literatura, discorda, inserindo nova perspectiva ao debate, ligada tanto à abertura propiciada pelas traduções quanto à intensa velocidade da comunicação digital. “O paradoxo é a gente ter um contexto de mais circulação da literatura, mas uma tendência dessa circulação a ficar sempre em torno dos mesmos gostos e interesses”, diz Vanessa, o que geraria “quadros de intolerância”.
Segundo ela, regidos pela lógica dos algoritmos, “a gente pode ficar só lendo mais do mesmo, fechados em mundos de gosto muito similares ao nosso, o que pode ser problemático”, e propõe utilizar “o lugar de circulação da literatura para ampliar o nosso horizonte e nossas visões de mundo”. É o que tem acontecido com “O Meu Pé de Laranja Lima”, romance infantojuvenil de José Mauro de Vasconcelos (1920-1984), publicado em 1968, que tornou-se um fenômeno na China e outros países orientais, com mais de 400 mil exemplares vendidos, inspirando mangás e música coreana. A identificação com personagens do livro teria levado pais a repensar o rigor educacional.
A escritora mineira Bruna Kalil Othero, que publicou em 2023, pela Companhia das Letras, o provocativo romance “O Presidente Pornô”, leciona aulas de Literatura na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, há três anos, e admite o maravilhamento dos gringos por descobrirem, “com muito atraso, que há culturas incríveis pulsando em diversas partes do mundo”. “Eles de fato se surpreendem quando países famosos por sua tropicalidade demonstram também capacidade de saber pensar. Yes, nós temos bananas, e cérebros!”, parodia. Além de destacar a tradução de Flora Thomson-DeVeaux para a obra de Machado, Bruna cita os trabalhos de Bruna Dantas Lobato e Johnny Lorenz com os livros de Stênio Gardel e Itamar Vieira Junior, respectivamente, como exemplos de sucesso. Ela, todavia, não enxerga a contradição.
Complexo
“Sempre foi assim, já dizia Nelson Rodrigues e seu ‘complexo de vira-latas’. Nós, brasileiros, temos dificuldade de valorizar a nossa própria cultura, enquanto exaltamos a opinião do olhar estrangeiro sobre nós”, sustenta Bruna. Mestre em Comunicação Social e doutoranda em Letras pela PUC-Minas, Nanda Rossi lamenta que, “determinados grupos do nosso país não consigam respeitar o valor de tantas obras literárias nacionais, usando-as para mobilizações próprias”. Na última semana, a escritora Adélia Prado tornou-se a primeira mulher mineira a ser laureada, pelo conjunto da obra, com o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa em todo o mundo.
“Ao mesmo tempo em que me alegro em ver nossas obras reconhecidas no exterior, em ver esse movimento divertido e curioso de interesse pela literatura brasileira na internet, não coloco aqui uma valorização do leitor de fora e uma desvalorização do leitor daqui por si só, de forma alguma. Acredito que essa contraposição venha, sim, como um reforço à tristeza que sentimos quando notamos esse desrespeito à nossa literatura, tão forte e tão rica”, completa Nanda, devota de uma “força pulsante da arte”.
Autor de “O Avesso da Pele”, proibido no início do ano em escolas do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná, Jeferson Tenório pondera que, “no caso de Machado de Assis, a gente sempre soube que ele era bom, tanto que ele nunca deixou de constar em nossos vestibulares”. “Me parece que essas leituras estrangeiras atuais demonstram um desconhecimento e até certo espanto, no campo do exótico, com o fato de o Brasil também ter um Shakespeare”, compara Tenório, que não deixa de concluir que, “por outro lado, às vezes o autor precisa do sucesso fora do país para ser reconhecido internamente depois”. “Quando o autor tem compromisso com o texto, com a arte e com a literatura, ele transcende o próprio tempo, se atualiza, torna-se universal”, avalia.
Censura
Na última quinta-feira (27), uma decisão da Justiça Mineira, protocolada pelo juiz Espagner Wallysen Vaz Leite, da 1ª Vara Cível da Comarca de Conselheiro Lafaiete, determinou que o livro “O Menino Marrom”, publicado pelo escritor e cartunista Ziraldo (1932-2024) em 1986, retornasse ao programa pedagógico das escolas do município mineiro, alegando que a prática de recolhê-lo configurava “censura” e impedia que os estudantes tivessem acesso a “ensinamentos importantes para o seu desenvolvimento como cidadãos de uma sociedade diversa e plural”, recorrendo à Constituição, ao citar que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de Conselheiro Lafaiete afirmou que “o livro continua e continuará sendo utilizado nas escolas da Rede Municipal, conforme o plano pedagógico estabelecido pelos professores e equipes pedagógicas. As atividades em sala de aula com o livro foram suspensas temporariamente em 18/06, não por censura ou intenção de exclusão, mas para que a equipe pedagógica pudesse reunir-se e planejar ações em resposta a diversas solicitações e questionamentos de pais, autoridades e comunidade”.
Em outro trecho, a nota exalta a obra de Ziraldo como “fundamental para a educação dos jovens, abordando temas essenciais como diversidade, preconceito, aceitação e amizade”. Por fim, repudia “veementemente manifestações infundadas de censura”. “As notas oficiais dos dias 19/06 e 20/06 comprovam que a ação sempre foi comunicada como temporária”, afirma a publicação.
Para Adriana Lins, diretora do Instituto Ziraldo e sobrinha do cartunista, o episódio reflete “uma postura de abandono, nos últimos 50 anos, a uma educação consistente”. “Temos várias gerações de pessoas que não sabem interpretar um texto”, constata Adriana, que aproveita a deixa para recuperar uma polêmica declaração do tio: “Ler é mais importante que estudar!”.
“É no sentido de que ler vem antes. Se você não ler, como vai estudar? Só vai decorar e repetir fórmulas, sem senso crítico, sem saber interpretar, contextualizar”, observa Adriana, que reputa Ziraldo como “um cronista social, grande observador por natureza, com mil anteninhas ligadas que captam o mundo e devolvem em arte questões que nos envolvem”. “Literatura não é cartilha, não tem que criar uma realidade ‘Cinderela’ para nos adestrar”, diz, lembrando a princesa…
Poder
A perseguição a “O Menino Marrom” teve como estopim o descontentamento de pais com trechos da obra que abordavam a ideia de um pacto de sangue entre as crianças e o desejo de uma das personagens de ver uma velhinha ser atropelada. Professora de Comunicação Social da UFMG, Camila Mantovani aponta que a proibição a livros não é novidade, e que “os primeiros casos registrados de censura tiveram por foco textos religiosos e políticos, que, à época, foram considerados ‘perigosos’ para o público em geral”. Por trás das cortinas, haveria “uma frase clichê, mas real: informação é poder”. “Quando as pessoas se informam, por fontes confiáveis, elas se tornam mais difíceis de serem manipuladas ou levadas a agir de acordo com determinados preceitos e regras que não admitem questionamentos”, assegura Camila.
O livro de Ziraldo não foi o único a padecer com o banimento recentemente, como demonstra “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, recolhido, no início do ano, em escolas do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. “Existe um discurso conservador, de uma comunidade que não quer que seus filhos tenham acesso a determinadas discussões”, pontua Tenório, cujo livro venceu o prêmio Jabuti em 2021, principal concurso literário nacional, e acabou incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) do Ministério da Educação no ano seguinte, o que propiciou a sua utilização em diversas instituições de ensino do país. “O avanço da extrema-direita pelo mundo está naturalizando essa violência da censura contra a arte”, afirma Tenório.
Em São José dos Campos, interior de São Paulo, o alvo foi o livro “Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas”, escrito pela juíza Flávia Martins de Carvalho, que resgata a trajetória de figuras femininas históricas, como Marielle Franco (1979-2018) e Conceição Evaristo. A retirada das escolas ocorreu após um vereador do PL bramir na tribuna contra o que considerou “apologia ao aborto”. Após a editora alegar censura à obra, o Ministério Público de São Paulo determinou que a prefeitura prestasse esclarecimentos. De acordo com uma pesquisa de cinco universidades dos Estados Unidos, publicada pela revista PNAS Nexus, livros infantis sobre raça e orientação sexual foram os mais banidos no país entre 2021 e 2022, atingindo o recorde histórico.
Liberdade
A escritora Bruna Kalil Othero defende que “não faz nenhum sentido proibir livros por terem cenas que algumas pessoas julgam ‘pesadas’ ou por abordarem temas tidos como difíceis ou espinhosos para a sociedade de hoje”. “É precisamente isso que a arte faz. Ela nos perturba, nos tira do lugar. Mas os conservadores, retrógrados, com ideias obsoletas, temem a provocação revolucionária das narrativas”, arremata a autora, que garante se entregar à escrita com “total liberdade”. “A ficção é minha melhor amiga: nela, pode tudo”, diz Bruna, como, aliás, já apregoava Clarice Lispector.
Professora de Comunicação Social da UFMG, Vanessa Brandão sublinha uma característica contemporânea que pode estar na raiz de muitos “cancelamentos” e movimentos de banimento de livros pelo país. “O procedimento mais comum é pegar um trecho da obra que, dentro daquela estrutura narrativa, pertence a um contexto que não deve ser tomado isoladamente”, opina. Com “uma circulação acentuada pelo uso das redes digitais”, pessoas que, “provavelmente não leram a obra em sua totalidade”, estariam acessando e destacando apenas algumas partes dos livros, como no caso de “O Avesso da Pele”, em que “cenas sobre corpo e sexualidade foram tiradas do contexto”.
De acordo com a docente, qualquer censura “veda a possibilidade de que a leitura possa expressar o mundo como ele é em sua diversidade, com personagens que trazem emoções e dificuldades”. “Essas dimensões que estão na vida, como o erotismo e a sexualidade, estão também na literatura”, postula Vanessa, que salienta o fato de “temas perseguidos na sociedade sofrerem o mesmo na literatura, que, no entanto, pertence ao campo da elaboração simbólica”. Nesse sentido, Nanda Rossi, doutoranda em Letras pela PUC-Minas, percebe que, hoje, “grupos subalternizados conseguem falar de suas dores, exigem reparação e direitos e nos propõem outros modos de vida”.
“Definitivamente, tais movimentos não aconteceriam sem um forte movimento contrário. São tempos em que alguns grupos, hegemônicos e acostumados com lugares de poder, não suportam o mínimo sacolejo cultural e social, e mobilizam suas forças políticas, econômicas e discursivas. Tentar silenciar essas vozes ou esses temas que se expressam pelos livros é uma dessas artimanhas”, sugere Nanda.
Professora de Letras da PUC-Minas, Márcia Morais salienta que o papel da literatura é, justamente, “exercitar-nos na convivência com muitas vozes”, como as “de narradores, personagens, leitores e as do autor que se cruzam à do leitor, às nossas vozes, em convívio democrático, tão ameaçado em nossa contemporaneidade”, assevera Márcia.
Em uma passagem célebre do livro “O Demônio da Teoria”, o crítico literário Antoine Compagnon recorda o caso de um bombeiro que abateu um ator no palco, ao não distinguir ficção e realidade, e sai-se com essa conclusão: “Basta ler dois romances, ver dois filmes, ir duas vezes ao teatro, para não sermos mais vítimas da alucinação”.