O diretor André Ristum só se deu conta do verdadeiro motivo de uma das personagens do livro “Holocausto Brasileiro” – da premiada jornalista e escritora mineira Daniela Arbex – ter chamado tanto a sua atenção, a ponto de ela inspirar a história de “Ninguém Sai Vivo Daqui”, muito depois de ter iniciado o trabalho de roteiro. O filme, que estreia hoje nos cinemas, foi construído a partir do relato real de uma jovem internada no Hospital Psiquiátrico Colônia, em Barbacena, a mando do pai, para esconder uma gravidez não planejada, mesmo não tendo qualquer problema de saúde mental.

“Lembrei, em algum momento, que minha mãe, antes mesmo de eu nascer, foi obrigada a abortar, por ter engravidado antes de se casar. Acho que isso falou, de alguma maneira, com o meu inconsciente. Talvez essa história tenha me impactado mais por ter a ver com a minha história pessoal”, registra Ristum. A personagem, vivida por Fernanda Marques, passa a conviver com pessoas doentes e outras que também foram parar no hospício como rejeitados da sociedade. “Fiquei muito surpreso ao descobrir que mais de 70% dos internados no Colônia não tinham nenhum tipo de diagnóstico”, afirma.

“O tratamento violento, abusivo, com internos psiquiátricos é algo que, infelizmente, foi muito comum não só no Brasil, como em outros lugares, tanto que teve uma reforma psiquiátrica na Europa, no final dos anos 1970. Por mais que as condições fossem horríveis, em relação ao respeito aos direitos civis, era a prática. No caso de pessoas que não tinham nenhum diagnóstico, é um abuso e, ao ler todas essas histórias, fiquei particularmente chocado com como alguém pode ser capaz de enviar uma pessoa próxima, porque geralmente era a própria família que fazia isso, para ser internada num lugar como aquele”, assinala.

Além de não se debruçar sobre as outras tantas histórias contadas em “Holocausto Brasileiro”, o filme não tem o rigor investigativo da reportagem publicada por Daniela Arbex, mais tarde ampliada para o formato de livro. “Na verdade, não dá nem para chamar de adaptação, porque eu teria que falar de pessoas que existiram de fato. Seria outro processo, precisando até mesmo de autorização de direitos. O que foi combinado com a própria Daniela é que seria livremente inspirado. O livro nos deu o começo, o pontapé inicial para contar essa história”, explica Ristum.

O cineasta salienta que, em “Ninguém Sai Vivo Daqui”, há vários arquétipos desenvolvidos ficcionalmente que também estão na publicação, mostrando outros exemplos de pessoas que foram injustamente internadas como pacientes psiquiátricas. A personagem da atriz mineira Andréia Horta é uma bela mulher enviada para o hospital por um prefeito, que a visita com frequência para manter relações sexuais com ela. Outra mineira, Rejane Faria, dá vida a uma senhora que não vê seu filho há 30 anos, retirado de seus braços logo após nascer e entregue a outra família.

Ristum teve contato com o livro logo depois de fazer “O Outro Lado do Paraíso” (2014), baseado na obra de Luiz Fernando Emediato, dono da Geração Editorial, por onde primeiramente saiu “Holocausto Brasileiro”. Foi Emediato quem lhe apresentou a publicação. O passo seguinte foi conversar com a escritora mineira, que não impôs dificuldade à adaptação. Paralelamente ao filme, também foi desenvolvida uma série, que acabou sendo lançada antes, em 2021, com o título “Colônia”. “Desde o início, pensamos nos dois projetos, com a série sendo financiada mais rapidamente”.

Por ser filmado em preto e branco e mostrar, já na sequência de abertura, pessoas sendo conduzidas contra a vontade para dentro de um vagão, a associação com o Holocausto é imediata. “O trem foi muito usado, infelizmente, na época do Holocausto nazista. Mas não teria como não ter o trem (no filme), até porque aquela expressão ‘trem de doido’ surgiu por conta disso, desses vagões que chegavam cheios de pessoas para serem internadas nessas instituições. Achamos que seria bastante impactante começar a história por ele, porque ajuda a catapultar para uma situação que, no nosso imaginário, é bastante conhecida”.

Ristum admite que fez uma opção ousada ao adotar uma fotografia em preto e branco, o que costuma afugentar exibidores e espectadores. “Sem dúvida, ele limita, sim, o acesso de público. Mas foi uma decisão conceitual mesmo. A partir de tudo que comecei a pesquisar, só me vinham imagens em preto e branco na cabeça. Não conseguia pensar em nada com cor. Ali o preto e branco tinha uma razão de ser, porque não havia brilho nem cor na vida daquelas pessoas. Ele ajudou também no cruzamento de gênero que o filme é, com o preto e branco contrastado casando bem à ideia de suspense e terror”, analisa.

O elemento sobrenatural, por sinal, cresce à medida que a narrativa avança, uma escolha que nasceu da vontade do realizador de investir nesse tipo de gênero. “Comecei a minha trajetória fazendo mais drama puro, filmes mais realistas e naturalistas, mas depois tive o desejo de me aproximar dos gêneros. Quando fiz ‘A Voz do Silêncio’, meu filme anterior, a personagem da Marieta Severo tem situações de delírio que se transformam numa situação de terror na vida dela. Aí, comecei a entender que poderia ser um bom caminho entrar no suspense e no terror a partir do terror real”, destaca.

Atriz acerta contas com carma familiar

Rejane Faria parecia estar, de certa forma, “possuída” durante as filmagens, de acordo com Ristum. “Ela conhecia a minha produtora de elenco e veio fazer um teste, que nem foi tão incrível, porque acho que estava muito nervosa. As coisas caminharam de um jeito que o personagem acabou ficando com ela. E, de fato, a Rejane teve uma performance muito fora da curva. Parecia que estava ‘recebendo’ alguém, realmente tomada pelo personagem. No meio do processo, ela acabou descobrindo que a avó dela tinha sido internada no Colônia. A gente se deu conta que era um carma histórico-familiar para ser resolvido”.

Independentemente do resultado de “Ninguém Sai Vivo Daqui”, Ristum já começa a filmar, no próximo mês, a segunda temporada da série. Ele preferiu não buscar outro personagem do livro, mas, sim, dar continuidade à história da jovem grávida. Desta vez, o projeto não contempla a produção conjunta de um filme, e ele descarta, por enquanto, uma sequência para a telona – o que pode mudar se o resultado das bilheterias superar as expectativas. Dando prosseguimento ao cinema de gênero, o diretor está em fase de finalização de uma série protagonizada por um vampiro. O “terror real”, porém, será substituído por toques de comédia.