“Mesmo sem saber tocar uma nota musical”, ele se tornou um dos produtores mais cobiçados do ramo, prestigiado internacionalmente. A última prova é a presença na trilha sonora do filme “Bad Boys 4”, protagonizado por Will Smith e Martin Lawrence, com a faixa “Flores para Ti”, que traz os vocais de Luísa Sonza e Becky G.

O feito consolida um sonho de infância de Tiago Cal, 37, que, nos anos 1990, assistia pela TV à saga da dupla de detetives contra o crime, numa Miami tomada pelo tráfico. Agora, o carioca criado no bairro da Tijuca desfila em Hollywood como mais uma estrela desse universo glamouroso, distribuindo autógrafos como “Papatinho”, ou melhor, “Papatino”.

“Não se trata apenas de um cheque, mas de deixar um legado na música, escrever mais um capítulo na minha história como produtor. Para mim, essa é a maior conquista que poderia ter”, resume Papatinho, que, para os gringos, é Papatino, “meio como Quentin Tarantino ou Al Pacino”, pela dificuldade que eles têm em pronunciar o “inho”.

“Não corrijo mais a pronúncia fora do Brasil”, diz ele, que adicionou em suas produções uma fala do rapper Snoop Dogg, dizendo: “Papatino, the number one”. “A galera no Brasil reconhece que sou eu, e a galera lá fora acha que sou ‘Papatino’”, diferencia. O apelido surgiu na infância, como uma derivação de “Sapatinho”, gíria carioca que significa “ficar no seu canto, quieto”, explica Papatinho, que toda vida foi “muito calmo”.

Ao entrar em estúdio pela primeira vez, os amigos “começaram a zoar os apelidos”, consagrando a alcunha que – mal imaginavam eles –, ganharia o mundo. “Achei que só ia ter uma música na vida, então deixei”, confessa ele, que, de início, “achava estranho e tinha vergonha” do nome artístico, justamente “por ser diferente”. “Mas acabei gostando, por ser único”, sublinha, entregando a chave que pavimentou o seu sucesso.

Funkeiro

Apesar da aparente “dupla identidade”, o que tornou Papatinho inconfundível foi o seu som, ou, melhor dizendo, a batida que ele criou para hits de Anitta, Seu Jorge, Ludmilla, Marcelo D2, Black Alien, dentre outros, até despertar atenção no meio e travar parcerias com os ídolos Timbaland, Dr. Dre, Will.i.am e o próprio Snoop Dogg.

As viagens para os Estados Unidos, a fim de se “conectar com compositores”, começaram em 2014. Passada uma década, Papatinho colhe os frutos sem se afastar das origens. “Eu sempre trago um pouco do Brasil comigo. Começa pelo meu nome, né? Papatinho é bem brasileiro. A galera está acostumada com nomes como Ronaldinho”, exemplifica.

Não por acaso, seu primeiro EP solo foi batizado com o nome de “Rio”, com “uma mistura de trap com funk, que são as duas fontes de onde bebi na minha caminhada, desde antes de fazer música até agora”.

“A questão do funk no Brasil é interessante, porque temos um mercado meio fechado, o que é curioso de se pensar, mas é verdade. Talvez seja por causa da língua portuguesa, mas, de algum modo, temos um mercado enorme aqui. Quem faz show no Brasil consegue se apresentar o mês inteiro, dado o tamanho gigantesco do país e a grande demanda por nossa música. Somos um dos maiores países em número de streamings, o que mostra como consumimos nossa própria música, especialmente o funk”, diz ele, para quem o funk se tornou mainstream.

Global

Papatinho não tem dúvidas de que o gênero veio para ficar, e “tem potencial para se tornar um fenômeno global”. “O preconceito já passou, embora ainda haja desafios para artistas da periferia, como sempre houve”, constata. Ele não deixa de prestar reverência “ao trabalho dos artistas pioneiros e de todos que promovem o funk”.

Desde moleque, ele se ligava no som de MC Marcinho, Cidinho & Doca e William & Duda, que se consolidaram como “uma verdadeira escola”. Se o funk e o rap abriram as portas da percepção para Papatinho, a curiosidade logo transformou o ecletismo numa espécie de guia desse ávido gosto musical que ele define como “música urbana”.

Em pouco tempo, baixar coletâneas de discos dos artistas da Motown, Michael Jackson e Marvin Gaye tornou-se uma mania, com o ouvindo revezando entre Caetano Veloso, Hyldon, Tim Maia, Gonzaguinha, Djavan, e etc. A passagem de ouvinte para produtor musical aconteceu inesperadamente.

“Eu só ouvia música, comprava CDs, e, quando surgiu o MP3 e a internet, fiquei obcecado. Eu era aquele moleque que pesquisava e baixava muitas músicas, tinha uma coleção enorme no meu computador e gravava CDs para as pessoas”, conta Papatinho, que deu os primeiros passos numa época remota, em que “os CDs pararam de ser vendidos, as gravadoras entraram em crise, e o streaming ainda não existia”. “Ninguém sabia o que ia acontecer com a música”, diz.

Rap

Foi nesse período obscuro e incerto que ele começou a “fazer beats de rap por acaso”. Junto a amigos de infância, que escreviam rimas, formou o grupo ConeCrewDiretoria, porque “queria ajudar de alguma forma”. Nas batalhas de rima, eles vivenciaram intensamente “a cena underground do rap, em 2005 e 2006”.

“Eu não tinha relação com a criação ou produção de música, mas gostava de organizar, pesquisar o que estava sendo lançado, gravar CDs. Então, comecei a produzir beats de rap. O hip-hop tem como essência o uso de samples, onde você pega um trecho de uma faixa e a recicla com uma nova roupagem e batida de rap. Foi graças ao uso de samples que descobri ser autodidata e que tinha um bom ouvido para produzir música”, explica Papatinho. Durante cinco anos, a empreitada com os amigos não rendeu grana. Mas, à essa altura, Papatinho já estava “obcecado”.

“Depois que gravamos a primeira música, comecei a produzir todos os dias”. Dedicado a outras profissões, ele ainda não enxergava a música como um trabalho, até que a internet os fez “explodir”. “E foi assim que tudo começou. Quando a ConeCrewDiretoria estourou, começamos a viajar e fazer shows. É uma longa história, mas acabei mergulhando de cabeça no mundo da música por acaso, sem influências familiares ou experiência prévia em estúdios. Me apaixonei e nunca mais parei”, afirma. 

O primeiro CD da trupe foi lançado em 2007, e, após 4 discos e sete anos de ausência, eles se preparam para um retorno triunfal que promete acalentar o coração dos fãs, que “estão aguardando ansiosamente esse álbum”, admite ele, que enxerga duma maneira crítica o cenário contemporâneo da produção musical.

Inteligência artificial 

“A facilidade crescente para criar e lançar novas músicas tem seus lados positivos e negativos. Por um lado, é ótimo porque democratiza o acesso à produção musical, mas, por outro, vemos muita repetição e falta de originalidade, o que me incomoda bastante. Sempre busquei criar minha própria sonoridade como produtor, e hoje vejo muita coisa igual sendo feita”, lamenta.

“A tecnologia, incluindo a inteligência artificial na música, tem transformado o cenário de maneiras imprevisíveis. Apesar das incertezas, acredito que o trabalho criativo dos produtores continuará sendo crucial. Se conseguirmos usar essas novas ferramentas de forma criativa e inovadora, poderemos explorar novas fronteiras na música”, complementa Papatinho, projetando esse futuro.

Seu Jorge e Luiz Gonzaga no radar antenado de Papatinho

Embora não precise mais utilizar samples para produzir música, Papatinho segue interessado no recurso, que foi sua base no início da carreira. Recentemente, ele sampleou “Carolina”, clássico de Luiz Gonzaga (1912-1989), em uma parceria com Major RD.

“Tenho meus sintetizadores, toco teclado e consigo sintetizar qualquer timbre que quiser e gravar no MPC (tocador multimídia compacto de computador) ou nos meus equipamentos. Não preciso mais dos samples, mas continuo amando essa prática. Mesmo quando produzo sem samples, tento fazer com que meu som mantenha essa estética. Isso traz uma versatilidade ao meu trabalho”, analisa Papatinho, que segue em busca de melodias que o toquem, “independentemente do gênero”, indo do rock à MPB, samba, eletrônica.

Um desses encontros que fizeram barulho foi com Seu Jorge e Black Alien, na música “Final de Semana”, que abre-alas com um recado direto do cantor de “Burguesinha”. “Liguei pro Papatinho perguntando/ Se ele tinha uma batida pra mim, uma batida pra mim/ Como sempre, ele demorou a responder”, entrega Seu Jorge, logo na introdução.

“Às vezes demoro para responder, porque recebo muitas mensagens no meu celular e estou sempre trabalhando, no estúdio, mexendo nas minhas músicas. Aí quando pego o telefone e tem um monte de áudio para ouvir, acaba demorando um pouco. Então rola essa piada, mas eu sempre respondo, não deixo ninguém sem resposta”, justifica Papatinho, que converteu a reputação em proveito próprio. “As pessoas brincam: ‘Pô, se até o Seu Jorge, que é o cara, falou isso…’. E acabam esperando um pouco mais, mas não é por mal”, reforça ele, que, como de praxe, tem inúmeros projetos a caminho.

“Produzi uma música para Sexyy Red, uma nova artista do rap que está estourando lá fora, tipo uma nova Cardi B. Estou no álbum dela, que produzi junto com Mike Will Made-It, um super produtor de Atlanta. Lá fora, também trabalhei numa música para um filme. Fora isso, continuo lançando projetos do meu selo aqui no Brasil. O projeto Papatracks é um deles, onde faço músicas com artistas convidados no estúdio e já gravamos o vídeo no mesmo dia. Só este ano, lançamos uns quatro ou cinco. Voltei com o projeto Papasessions, da Papatunes, que é um projeto acústico. Recentemente, lançamos um com L7NNON, Nog, Oik e Pezão”, enumera Papatinho, que prevê assinar “mais de 50 produções este ano”.

“Estar envolvido nessas possibilidades e na incerteza do que pode acontecer me mantém vidrado, sempre fazendo novas músicas”, arremata Papatinho, que permanece “disposto a criar algo envolvente, com uma levada viciante”.