Carla Madeira escreveu uma história em sua cabeça, “um pequeno livro que se perdeu”, e que contava a saga de crianças no afã de convencer as autoridades de um plano infalível. Ela tinha cerca de 12 anos e vivia sob a “influência absoluta de Monteiro Lobato”, por quem sofreu o “primeiro deslumbramento” literário, logo acompanhado de perto pelas tirinhas de Mauricio de Sousa e sua “Turma da Mônica”.

Ainda “sem tanta consciência”, Carla percebia que “havia uma história e um jeito de contar que fazia toda a diferença”. O contato com a palavra poética, no entanto, já havia ocorrido através da música. “Muito nova, ganhei um violão e era alucinada pela MPB”, relembra. Com o instrumento, ela aprendeu a tocar, de cara, o frevo “Deus e o Diabo”, de Caetano Veloso. Em pouco tempo, “a liberdade e graça” de Rita Lee a fisgaram definitivamente.

Hoje, próxima de completar 60 anos em outubro, a mineira de Belo Horizonte que cresceu entre a boneca Emília, Tia Nastácia, Dona Benta, Narizinho, Mônica, Magali, Os Doces Bárbaros, Maria Bethânia e Gal Costa, é a escritora mais vendida do Brasil, com traduções a caminho para países como México, Itália e Rússia, e, recentemente, seu best-seller “Tudo É Rio” foi eleito o livro do ano em Portugal, premiação concedida pela conceituada rede de livrarias Bertrand, a maior e mais antiga do país lusitano.

 Publicada pela editora local Quixote+Do, em 2014, a obra tornou-se um fenômeno graças aos clubes de leitura, durante a pandemia de Covid-19, o que a levou a ser relançada, sete anos depois, pela Record. Carla credita o sucesso à “complexidade”. “O livro é sagrado e profano, poético e cru, tem um Deus carrasco e acolhedor”, afirma.

Adaptações para o audiovisual a caminho 

Para a escritora, seu romance de estreia “talvez junte muitas questões que estavam espalhadas no leitor, com essa possibilidade de alargar o mundo, tenho ouvido muitos depoimentos nessa direção”, compartilha. Com os direitos de adaptação cedidos para a produtora Boutique Filmes, “Tudo É Rio” vai se transformar em filme, atualmente na fase de desenvolvimento do argumento.

Já “A Natureza da Mordida”, de 2018, e “Véspera”, de 2021, serão séries transmitidas pela HBO. Em meio a esse turbilhão, a publicitária que segue à frente da agência de comunicação Lápis Raro, há quase quatro décadas no mercado, dedica-se, “sem previsão de terminar”, ao seu quarto livro. “Estou trabalhando arduamente, pelejando, como dizemos aqui em Minas”.

Ela informa que o enredo passa por sua “questão de sempre”. “Os acontecimentos que impactam a existência de uma família de maneira arrebatadora, esse é o fio condutor”. Em “Tudo É Rio”, o foco narrativo volta-se para a teia de relações entre a prostituta Lucy e o casal Dalva e Venâncio. Carla defende que, em suas páginas, “a carga erótica da sexualidade convive com a delicadeza da espiritualidade”.

“Você não precisa olhar uma palavra no dicionário para entender a história, e, ao mesmo tempo, há ideias complexas sobre a existência. O livro não simplifica, mas é simples na linguagem”, resume ela, que, ao fugir do maniqueísmo, busca “dar vazão às potências de bem e mal do ser humano, explorar a abundância de circunstâncias que a vida traz pra gente”.

Geração convive com sucesso de público e crítica 

Carla Madeira é parte de uma geração de escritores nacionais que tem conjugado popularidade com prêmios da crítica, como o baiano Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado”, e o carioca Jeferson Tenório, que viu seu “O Avesso da Pele” no centro de uma polêmica após ser censurado pelos governos de Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná.

“Essa turma toda está fortalecendo a nossa literatura, ao mostrar o valor de encontrar histórias com aderência na sociedade, próprias do lugar de onde viemos, sem deixar de serem universais”, celebra Carla. Com trajetórias distintas, ela salienta que, no seu caso, a escrita não acontece “a partir de uma pauta social, o compromisso com um tema ou um acerto de contas”. E que a realidade social aparece porque, “ao olhar o mundo em que vivo, essa tem sido a lógica dos acontecimentos”, analisa Carla.

“A literatura está imersa na realidade, que é a matéria-prima. Mas eu me sinto muito livre quando escrevo, sem nenhum tipo de censura ou aprisionamento”, complementa. De alguma maneira, “Tudo É Rio” se impôs à autora como uma necessidade. “Não decidi escrever o romance, comecei a fazer um exercício de linguagem, para experimentar um jeito de contar alguma coisa que ainda nem existia em si”, salienta.

Surgindo “à medida em que era escrita”, a história ficou interrompida durante 14 anos, ao menos no papel, depois que Carla escreveu “uma cena brutal”, e que a “paralisou”. Mesmo parado, “o livro não parou de ser escrito”. “Vira e mexe vinha alguma ideia que eu anotava”, diz Carla. Nesse ínterim, outro casamento e o nascimento dos dois filhos serviram de “motor ao amadurecimento” para que ela finalizasse seu primeiro romance.

Estilo sofreu influência de estudo neurobiológico 

Ao se debruçar novamente sobre o livro, Carla mantinha acesa a chama de “um estudo prolongado” acerca da obra do neurobiólogo chileno Humberto Maturana. “A grande pergunta que ele faz é como, do ponto de vista biológico, a gente aprende. Essa questão para mim é determinante na maneira de enxergar a relação entre emoção e razão”, pontua ela, que passou a compreender a primeira como “espécie de disponibilidade corpórea”.

“É uma paisagem interna, com líquidos, relevos, sensível a qualquer perturbação, e que se modifica à medida em que vamos vivendo”. Por outro lado, a razão “procura dar coerência a essa paisagem, na dimensão social da linguagem”. “Ou seja, o corpo sente e a linguagem elabora”, conjectura Carla. Tal percepção levou para “Tudo É Rio” um estilo que verte, em metáforas, aspectos físicos.

“As pessoas vêm falar para mim sobre o livro com expressões como ‘soco no estômago’, ‘chorei um rio de lágrimas’, ‘senti tesão’. A notícia do que acontece no corpo delas é visível”, observa Carla, devota de certa autonomia da leitura. “Quem produz oferece uma ocasião para que o leitor reescreva a obra a partir de suas vozes, histórias, contextos e circunstâncias. É como se o autor entregasse um rascunho que quem completa é o leitor, com a sua subjetividade”, postula.

Mesmo em seu papel de escritora, Carla moveu-se no tempo e no espaço. Se “Tudo É Rio” veio como “um jorro muito intuitivo, encerrando as etapas quando sentia certo esgotamento”, com “A Natureza da Mordida” e “Véspera” ela experimentou a construção de uma arquitetura, “mais consciente das escolhas narrativas, da organização dos capítulos, etc.”, conclui.

Formação fragmentada e vivência no interior

Carla Madeira escolhe a palavra “fragmentada” para descrever a sua formação literária, agregando, lado a lado, autores clássicos como Guimarães Rosa, Dostoiévski, Victor Hugo, Machado de Assis e Clarice Lispector. “Em todos esses autores existe um nível de liberdade que me impacta. O sujeito encontrou um lugar onde ele está solto e dança uma valsa. É impressionante o que se pode fazer com a liberdade quando o autor domina a linguagem”, exalta.

Filha de pais vindos do interior de Minas, Carla se habituou a passar a infância e a adolescência em lugares “onde a sonoridade e a sabedoria empírica” a cativaram pela “maneira poética como as palavras se ajeitam, com aquilo que as pessoas têm à mão”.

Ao se deparar com “situações extremas, em que o equilíbrio entre bem e mal parece se romper e o trágico acontece”, Carla é incapaz de abafar a angústia em seu peito, o que a carrega, inevitavelmente, para a literatura. “Como a gente dá conta dessa condição humana?”, indaga.

“Acho que escrevo sobre isso porque parte dessas coisas têm muito a ver com o núcleo familiar, que é onde recebemos nossas primeiras noções de valores, experiências, onde o mundo nos recebe pela primeira vez”, completa.

Seguindo a psicanálise, ela acredita que a “capacidade de simbolizar o mundo através da linguagem” é a forma de enfrentar o desamparo da angústia quando ela ainda não virou palavra. “A literatura lida muito com o inconsciente, e tenta organizá-lo”, arremata.