Super Tina dá um chute certeiro bem naquele lugar mais sensível do abusador, arremessando-o a metros de distância da vítima. É uma super-heroína que toda mulher gostaria de ter por perto. E também uma criação de uma garota que, cotidianamente, sofre violência sexual de seu padrasto. 

A sequência é um ponto-chave da história de “Só Não Posso Dizer o Nome”, longa-metragem de Helvécio Ratton que está sendo rodado em Belo Horizonte desde o último sábado. Baseado numa graphic novel autobiográfica chilena, intitulada “No Abuses (de este Libro)”, de Natalia Silva Perelman, ela impõe novos desafios ao diretor mineiro.

Ratton já abordou diversos tipos de violência – desde a manicomial (no curta documental “Em Nome da Razão”) às torturas praticadas na ditadura militar (em “Batismo de Sangue”). Mas esse viés focado na mulher é inédito em sua carreira de quase cinco décadas. O que o levou a se cercar de uma equipe majoritariamente feminina no set.

“Eu queria trabalhar com um olhar feminino bem próximo, na medida que é um tema que envolve as mulheres profundamente”, assinala o realizador, que contou com o auxílio de Laura Barile e Pilar Fazito no roteiro. Pai de quatro filhas, Ratton assinala que o universo feminino concentra as suas preocupações desde muito cedo.

“Acabei criando uma sensibilidade para lidar com isso, o que me levou à história”, registra. A graphic novel, lançada em 2018, ainda não ganhou versão em português e só chegou às mãos do cineasta por indicação de um amigo chileno – Ratton se exilou no país sul-americano na década de 1970, onde deu os primeiros passos no cinema.

“Obviamente, (na época em que eu comprei o livro) o tema já estava na ordem do dia e, talvez, não tanto como está agora. Hoje ganhou ritmo de denúncia, de fatos sendo trazidos à tona, que impressiona”, destaca. A trama acompanha uma garota que, sem o apoio da mãe, conta os dias para completar 18 anos e denunciar o padrasto na Justiça.

“Gostei principalmente por ser uma história de superação, de uma garota que vai à luta. Ela não só enfrentou o cara como também teve uma saída pela arte. Além de tê-lo denunciado na Justiça, criou uma novela gráfica, contando toda essa história”, observa. Essa de forma de resposta conduziu Ratton a outro lugar inédito: a animação.

No set, a lutadora Ciani Marques faz o papel de Super Tina, dando “uma surra” em Bruno Matos, intérprete do padrasto. Na pós-produção, ela será substituída por uma personagem de desenho animado. “O filme será uma mistura de live action e animação. ‘Uma Cilada para Roger Rabbit” foi o filme mais expressivo nessa junção”, revela Ratton, citando o longa de 1988 produzido pelo cineasta Steven Spielberg.

“Tanto no livro quanto no filme, a garota é talentosa, desenhando muito bem. Quando é abusada, invoca a heroína, que é um alter ego dela. Super Tina dá uma joelhada no s... dele, chuta a barriga e o joga fora. Mas tudo acontece na cabeça dela, sendo a forma que encontrou para enfrentar. Essas intervenções em animação me permitem tratar as cenas com leveza”, adianta.

Ratton lembra que a personagem tem semelhanças com Ritinha, a protagonista de seu primeiro longa de ficção, “A Dança dos Bonecos” (1986), unidas pelo sentimento de bravura. “Ritinha é uma garota corajosa que sai mundo afora em busca de seus bonecos, que foram roubados por dois artistas saltimbancos. Tina também é corajosa ao enfrentar o padrasto e a mãe e contar toda a verdade”.

Outro reencontro com o passado fílmico aconteceu na hora de formar o elenco. Ciani, descobriria depois, é neta do ator Ezequias Marques (1922-2014), que trabalhou com Ratton em “A Dança dos Bonecos”, “Menino Maluquinho – O Filme” e “Amor & Cia”. A protagonista será vivida por Lara Martinelli quando criança e Laura Del Picchia na fase jovem.

O elenco, por sinal, é quase todo ele mineiro, repetindo o que foi feito em “O Lodo”, longa anterior do diretor. “Foi uma experiência que gostei muito. Como é um filme em que queria privilegiar a interpretação das duas atrizes que vivem Tina. Elas são iniciantes e optei por filmar a história de forma cronológica. Para isso, precisava ter os atores adultos muito disponíveis”.

Apesar de ser uma narrativa de origem chilena, “Só Não Posso Dizer o Nome” será completamente passado na capital mineira. “O filme é inspirado na novela de Natalia, mas toma outros caminhos também, em relação a personagens e situações. Tem coisas bem diferentes, na verdade. É uma história urbana e universal, que poderia passar em qualquer lugar do planeta, digamos”, compara. (Com Renata Abritta)