A ponta fria da lâmina penetra o tronco pálido, circundado pela ferrugem que corrói a parede outrora branca, enquanto, ao rés do capim, fulgura a retorcida, lânguida e imponente fruta esverdeada, repleta de polpa, contida no cacho, prenunciando a esperança em seu corpo ao mesmo tempo doce e imaturo. Luiza Villarroel, 36, fotografou esse quadro em Bichinho, a 7 km de Tiradentes, interior de Minas Gerais, onde sua mãe morou durante 15 anos. 

“Quando ela resolveu vender a casa, eu comecei a querer guardar alguns detalhes na fotografia, caso a minha memória falhasse. Comecei a registrar cantos especiais para mim, e, principalmente, o quintal onde estavam as bananeiras. E acabei criando uma série de fotos desse cacho de banana que minha mãe tinha acabado de colher, e até o facão ainda estava encaixado no dormente”, conta Luiza. 

Há alguns anos, numa tarde de domingo, João Paulo Vale, 38, registrou “dois garis jogando futebol com um coco vazio, lá na Praça do Papa”, em Belo Horizonte. “É o tipo de coisa que só é possível registrar explorando os lugares.  A fotografia urbana celebra toda a diversidade do cotidiano. Desafia qualquer padrão estético e convencional, e nos conecta com tudo que está ao nosso redor”, garante João Paulo. 

Ao se sentir ansiosa ou agitada, Karen Ramos, 32, aproveita o final da tarde para observar os últimos raios de sol sobre as casas da rua, prédios, pessoas e objetos. “Acredito que toda cena pode se tornar mais bela a depender da luz que incide nela”, reflete Karen. Com uma pequena ave que descansa em seu ombro de criança, o olhar de Emily é a expressão das “histórias de dentro” que Patrick Arley, 44, busca com sua arte. “Sou uma pessoa de terreiro, do Congado, o lugar que eu assumo no mundo e na fotografia é de uma diáspora negra num país extremamente racista”, determina Patrick.

Isis Medeiros, 34, pratica “uma fotografia de denúncia, que anuncia um novo tempo”. Recentemente, ela acompanhou um grupo de mulheres que protestavam contra o projeto de lei que equiparava o aborto ao crime hediondo. “Aponto minha câmera para as questões que me movem”, proclama Isis. Eclético, Gabriel Cabral, 34, mira sua lente para tudo, “das coisas banais e efêmeras às questões existenciais e sociodinâmicas”. “O despertar para um tema está no desejo de compreender”, afiança Cabral.

Luz

Oriundos de diferentes segmentos, propostas e formações, a trupe de fotógrafos residentes na capital mineira e sua região metropolitana se une pelo ofício de eternizar em imagens o incessante bulir da vida, nesse dilema posto em palavras pelo escritor e crítico literário Davi Arrigucci Jr.: “Como apanhar o movimento do real, se ao fotografar ou contar congelo o fluxo?”. 

Formado em antropologia, Patrick Arley viveu experiências transformadoras entre 2015 e 2022, que culminaram na exposição “Moçambique-Brasil: Uma Ponte Contracolonial”. “Eu não acho que a fotografia e a vida sejam coisas diferentes, essa é uma ideia datada, elitista, que convém a alguns, mas não é o que me interessa. A gente não fotografa pessoas, a gente fotografa relações”, define Patrick, que aproveita para sacar um verso do poeta Vasco Gato: “Não esqueças, sobretudo, de olhar devagar”. 

Luiza Villarroel cresceu em uma família “sem muitos estímulos artísticos”, e apenas na faculdade de Comunicação Social, ao se deparar com a disciplina de fotografia, se apaixonou pela “revelação manual do processo analógico e todo seu universo mágico”. Com 19 anos, ela já trabalhava com fotojornalismo para o jornal do curso. Referências mundiais da fotografia como Sally Mann, Duane Michals, Man Ray, Elliott Erwitt, Bresson e Steve McCurry rapidamente ganharam seu coração. Paralelamente, Luiza iniciou seu trabalho com fotografia de casamentos e ensaios. 

“Quando vou fotografar algo ou alguém eu costumo me perguntar ‘porque dessa forma e não de outra? O que isso significa para mim e para quem está sendo fotografado?’”, revela Luiza, que utiliza a palavra “essência” tanto para o papel da iluminação na fotografia quanto para sua busca criativa com as imagens. “Esteticamente eu tento, algumas vezes, quebrar o óbvio do que seria esperado naquela imagem, através de uma luz diferente, de um enquadramento fora do padrão, de permitir uma fotografia mais ruidosa”, explica Luiza.

Karen Ramos também não esconde a predileção pela iluminação. “Sabe aquela luz de fim da tarde, que deixa tudo mais aconchegante? Ela desperta a minha criatividade, curiosidade e me faz querer fotografar seus detalhes e variações”, declara Karen, que, desde pequena, ouvia histórias da infância enquanto folheava os álbuns fotográficos da família.

Ela relata que os pais “adquiriram uma máquina fotográfica popular com muito suor, pois sabiam o valor que esses registros teriam posteriormente”. “Mas não tinham preocupação em aprender de fato a fotografar melhor, era tudo muito intuitivo e cumpria perfeitamente a função de registro das memórias do que vivemos”, pontua. 

Câmera

Karen só foi se interessar pela fotografia na adolescência, “época em que usava uma câmera cybershot simples”, parcelada de 10 vezes no cartão de crédito do pai. Mesmo sem conhecer os conceitos básicos de sua futura profissão, ela já se “preocupava em planejar as imagens antes do clique”, ao compor autorretratos na intimidade do quarto. “Gostava de criar imagens mais subjetivas, mostrando apenas alguns detalhes do rosto ou do corpo. Era mais parecido com o que chamamos de fotos ‘conceituais’ do que com o que conhecemos como ‘selfies’”, elucida Karen.

O “processo e o resultado das fotografias” aumentavam sua autoconfiança. Certo dia, uma amiga disse que ela deveria ser fotógrafa. “Nem sabia que isso poderia ser uma profissão, meu foco era me tornar veterinária”, conta Karen. Anos depois, já atuando como fotógrafa, Karen descobriu como “ajudar outras mulheres a melhorarem a relação com seus corpos através de retratos”, e, por ironia do destino, chegou a “retratar essa amiga num momento de baixa autoestima e ajudá-la a se olhar com mais carinho”. 

“Senti que ela estava confiando em meu olhar pela segunda vez na vida”, celebra Karen, que, atualmente, dedica-se a ensaios de mulheres que ressignificam a perspectiva de sensualidade. Embora tenha “perdido o hype das cybershots”, ao ficar alguns anos afastado da fotografia, João Paulo Vale retomou o interesse pelo ofício ao adquirir uma câmera semiprofissional, em 2014. “Foi quando toda aquela curiosidade de criança voltou à tona. Desde então, a fotografia virou minha vida”, resume. 

Ainda na infância, uma de suas diversões era “pegar uma câmera que tinha em casa e ficar elaborando composições com os brinquedos que eu tinha, nos mais variados cenários, mesmo sem filme na máquina”, recorda. Hoje em dia, a relíquia integra a decoração da casa de João Paulo, especializado em registros urbanos, “onde a essência de qualquer lugar pode ser capturada da forma mais crua possível”. 

Ação

As mudanças sociais e climáticas estão na ordem do dia tanto quanto na mira da documentarista e fotojornalista Isis Medeiros, disposta a alterar a lógica de uma fotografia historicamente utilizada “a favor da guerra e da dominação”. “A fotografia tem um papel importantíssimo como ferramenta de transformação”, declara Isis, que quer “contribuir com o mundo e a sobrevivência da nossa espécie”.

Gabriel Cabral almeja uma fotografia “que comunique, provoque, instigue, contribua com debates relevantes”. Nascido em São Paulo, ele se formou em Fotografia, estudou Cinema, e, após experiências com a fotógrafa holandesa Corinne Noordenbos e a brasileira Claudia Jaguaribe, aportou em Belo Horizonte para realizar seu ofício.

“Todo meu trabalho é artístico”, enfatiza Cabral, que tem feito experimentos com inteligência artificial. Em 2020, ele criou a editora Sô Edições, dedicada a novos artistas. No rebuliço do Carnaval de BH, em 2019, Cabral produziu a exposição “Encarnar”, com fotografias panorâmicas dos blocos de rua. “No final, é sobre comunicar com potência”, diz Cabral. 

Todo mundo fotografa? 

Ciente de que não existe futuro sem passado, Patrick Arley retrocede ao século XIX, precisamente em 1839, quando a França anunciou a invenção do daguerreótipo, o ancestral da câmera fotográfica e primeiro processo fotográfico a ser comercializado ao grande público.

Ao liberar a patente da bugiganga para ser desenvolvida e utilizada por várias pessoas, a alegação oficial era de que “aquilo beneficiaria a humanidade”, mas Patrick contesta essa história, segundo ele “muito francesa, branca, autocomplacente”.

“De que humanidade estamos falando? Geopoliticamente o que estava acontecendo, na mesma época, era o imperialismo em África e outros continentes, essa nova forma de colonialismo europeu extremamente violento e já atrelado ao capitalismo”, denuncia. 

A reflexão serve para mostrar que, “desde muito cedo, a fotografia foi usada como instrumento de dominação e expropriação desses povos não europeus, principalmente negros, através da construção de um tipo de imagens que reforçava teorias racistas e pseudocientíficas”.

“Essa história da fotografia escamoteia a grande violência com esses povos, ao postular que existe uma certa linguagem visual que seria de exclusividade desses povos brancos dominadores”, sustenta Patrick. Diante desse quadro, ele celebra a democratização da fotografia propiciada pelas mudanças tecnológicas. “Há uma ideia por trás desse discurso de que a democratização da fotografia seria ruim, que é de manter privilégios. E eu vou na linha oposta”, diz Patrick.

De acordo com ele, graças à digitalização da fotografia, “pessoas que não tinham acesso ao meio começaram a criar as suas próprias narrativas estéticas e a falar de si mesmos”. Patrick resgata um ditado africano que aprendeu em Moçambique: “O que fazes para mim, sem mim, fazes contra mim”. 

“Hoje, temos no Brasil povos tradicionais, indígenas, quilombolas, fazendo as suas próprias imagens da fotografia, do cinema, e não apenas no campo do fotojornalismo e da arte, mas da própria produção cotidiana de memória, e essas fronteiras, que nunca são fixas, vão cada vez se embaralhando mais, o que acho muito positivo”, festeja Patrick, que, além de fotógrafo, é antropólogo.

Editor de fotografia de O TEMPO, Daniel de Cerqueira, 47, corrobora a análise e se fia em uma experiência particular. “Olhando para o lado social, a democratização no acesso à produção de imagens é muito importante, pois pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade hoje podem registrar a sua realidade e produzir um registro histórico familiar. Isso não acontecia 20 anos atrás. Meu pai, por exemplo, tem apenas uma foto de quando criança”, situa.

Ao mesmo tempo, Cerqueira constata que “o mercado fotográfico restringiu-se muito”. “Antes, as empresas contratavam freelancers ou mantinham fotógrafos em seus quadros para o registro de suas produções. Atualmente, um funcionário com um bom smartphone, mesmo sem alcançar uma excelência fotográfica, resolve tal questão”, diz.

Isis Medeiros também sentiu essa transformação. Ela aponta especificamente a dinâmica das redes sociais. “Há bem pouco tempo, o Instagram era voltado para imagens estáticas, mas, hoje, o engajamento e os algoritmos priorizam os reels (formato de vídeos curtos) e outros recursos que a gente precisa aprender a usar para que as pessoas prendam o olhar na sua imagem”, exemplifica Isis. “O que adianta publicar uma foto maravilhosa e não atingir as pessoas?”, questiona a documentarista e fotojornalista.

Luiza Villarroel percebe que, “de forma complexa, as novas tecnologias tornaram a fotografia mais acessível, o que é extremamente importante, mas, também, trouxeram um imediatismo no resultado da imagem, na urgência das publicações, e a busca por perfeição estética que não existe na vida real”, diz, em referência aos filtros das redes sociais, como o próprio Instagram.

Fotógrafo de O TEMPO, Rodney Costa, 53, problematiza a questão da inteligência artificial na fotografia. “Para mim, fotografia é o ato de você ter como meio de trabalho uma câmera, seja ela analógica ou digital. A recriação a partir da inteligência artificial, eu não vejo com bons olhos”, afirma Rodney, que se preocupa com dilemas éticos relacionados à novidade tecnológica, quando “se cria uma imagem que não existe”. Por outro lado, ele acredita que “se essa ferramenta for usada para recriar situações da pré-história, quando ainda não existia câmera fotográfica, ela pode acrescentar algo”.

Gabriel Cabral se permite abrir divergência. “Sou uma cria da fotografia digital”, diz ele, que tem desenvolvido vários projetos “a partir de pesquisas com a inteligência artificial”. “Duas perguntas me provocam em especial: quais imagens são possíveis de criar apenas com auxílio dos computadores, e quais apenas eu posso fotografar?”, indaga Cabral.

Ele pondera que “é fundamental pensarmos numa formação visual para um mundo visual”. “Somos bombardeados por imagens e também criamos volumes de imagens diariamente, mas, na realidade, temos uma sociedade visualmente analfabeta, e num mundo de fake news, inteligência artificial e polarizações, isso é muito perigoso”, detecta.

Isis concorda que o maior desafio é “termos novos olhares sobre a fotografia”. Cerqueira tem se proposto a “reconstruir o olhar para os elementos urbanos que permeiam o dia a dia das pessoas” na cidade onde vive, “tentando trazer beleza para o ordinário”, sob a ideia do artista plástico Hélio Oiticica, “de que as cidades são grandes museus a céu aberto”.

“Acredito muito nisso, pois podemos ver até um poste como uma intervenção artística”, sustenta Cerqueira. Para Patrick Arley, o segredo vige numa frase do fotógrafo norte-americano Robert Frank: “Gostaria que as pessoas olhassem uma foto minha como alguém que deseja ler o verso de um poema pela segunda vez”...

Revelando-se através do outro

Acompanhando um grupo de “mulheres mais velhas, pessoas resolvidas”, que realizaram uma caminhada entre Diamantina e Capivari, no Alto Jequitinhonha, Rodney Costa, fotógrafo de O Tempo, compreendeu que elas estavam “literalmente, dedicando um tempo para si”. “A fotografia é muito pessoal. Para cada vivência, eu tenho uma experiência diferente”, sustenta Rodney.

Os álbuns de família serviram de entrada para Rodney Costa a esse mundo das imagens. Ele se lembra, especificamente, de um fotógrafo que batia de porta em porta, logo contratado pelo pai, com quem Rodney trabalhou, por muito tempo, numa marcenaria. Já atuando como office-boy para pagar a faculdade, Rodney decidiu cursar Comunicação Social, e, ao ser aprovado, descobriu a vocação nas aulas de fotojornalismo ministradas pelo professor Hamilton Flores.

“A gente recebia o filme, colocava na máquina, tirava o filme da câmera, levava para revelar no laboratório e via as imagens surgindo dentro dos processos químicos e aquela magia acontecendo”, rememora Rodney. “A partir dali, alguma coisa foi me dizendo que eu iria, futuramente, trabalhar com fotografia”, complementa. Rodney não tem dúvidas de que o ato de fotografar é “se descobrir”.

“A fotografia é um misto de tudo aquilo que você absorve na sua formação, ela expressa a sua visão de mundo”. Sem se limitar a um nicho, ele amplia o leque e abre a lente da sua câmera para tudo que o instigue, de fotos sociais a publicitárias. No horizonte, Rodney mira a possibilidade de fotografar as Olimpíadas de Paris, algo inédito em sua trajetória de décadas. “A fotografia te traz várias memórias, e isso, talvez, seja o mais importante”, arremata.