“BH é quem?”. A pergunta que já foi difundida por grafites, publicidades, hashtags de instagram e letreiros de led estampados na Festa da Luz tem a sua origem na voz marcante de um dos maiores nomes do funk produzido em Belo Horizonte nos últimos anos. Entoado tantas vezes por MC Rick nos versos de suas músicas, o questionamento — e sua resposta — se tornaram uma espécie de grito de pertencimento para uma produção musical que sabia e reivindicava muito bem o seu lugar diante da hegemonia do eixo Rio-São Paulo: um funk que se reinventou e, ‘devagarim’, com muitos talentos reunidos, encontrou suas singularidades até o topo das listas do Spotify. Afinal, como responde o próprio bordão: “BH é nóis”. 

Mas o que é que define o som dessa coletividade criada entre montanhas? O beat envolvente que se ramificou por remixes na linguagem das MTG’s começou a ser gestado na última década, apesar de o funk assinar capítulos importantes na vida cultural da cidade desde os anos 80. Tradicionalmente, até a década de 2000, tal gênero musical em terras mineiras se valeu dos bailes realizados em quadras esportivas, das letras de vertente consciente e das influências do Miami Bass e do Freestyle, dois subgêneros importados do hip-hop norteamericano. No entanto, em meados da década de 2010, surge uma guinada nos caminhos sônicos da produção local, que começa a experimentar com tons agudos, com o ritmo lento (o BPM - batidas por minuto - reduzido) e com uma narrativa eletrônica minimalista e atmosférica, que se diferencia da fórmula de frequências graves, como o tamborzão do Rio de Janeiro, ou das montagens mais agressivas e em andamento acelerado de São Paulo.

“Tanto a primeira onda de um sucesso mais nacional do MC Rick, quanto agora as MTG’s, as montagens, carregam poucos elementos musicais, mas com uma sagacidade de fazer algo muito bem desenvolvido e contagiante, meio chiclete mesmo”, indica o jornalista e pesquisador musical GG Albuquerque. Ele aponta que esta produção minimalista aliada à expansão das produtoras independentes possibilitou alavancar a importância do funk mineiro a nível nacional. “Há um amadurecimento, a criação de uma estrutura mais forte nacionalmente, em que os artistas não dependem de gravadoras e outros tipos de intermediários. E isso acontece também no funk de BH. Os artistas conseguindo tocar sua carreira, sem necessidade de passar por São Paulo ou Rio”, ele pontua. 

Alexandre Materna, o MC Papo, é nome veterano da cena, dono do hit “BH é o Texas” e conhecedor das evoluções deste funk. Ele explica que o conservadorismo, o apego mineiro às tradições, é também o que fez com que produtores e MC’s tenham demorado a explorar fórmulas mais autorais dentro do gênero. Atualmente experimentando com o estilo mexicano ‘corridos tumbados’ em seus lançamentos, ele mesmo enfrentou resistência dos pares de cena quando lançou o sucesso “Piriguete” nos anos 2000, por misturar funk com reggaeton - em uma época em que o funk mineiro seguia os passos já formatados do funk carioca e tinha caminhos árduos para chegar ao mainstream.

No entanto, em julho de 2018, a música “Parado no Bailão”, de autoria de Mc L da Vinte e MC Gury era lançada, alcançando posição entre as 10 músicas mais tocadas no YouTube e no Spotify. Um dos segredos deste sucesso está em uma assinatura já conhecida da produção local: MC Delano, que produziu a faixa e é considerado o precursor do novo funk mineiro, tendo sido ‘padrinho’ de nomes como MC Rick. 

MC Papo aponta que as origens de Delano no samba e suas experiências como multi-instrumentista desencadearam uma virada das produções funkeiras na cidade, acrescentando ao ‘beat’ (a batida), os toques agudos que são provenientes do agogô, junto a narrativas mais melódicas: “Isso aí é marcação de terreiro de macumba, é exatamente desse jeito que o agogô é tocado. O tambor já vai mais rápido. Então, na hora que o tamborzão veio [enquanto estilo musical], todo mundo gostou porque já estava no nosso sangue. Mas o agogô de terreiro que o Delano trouxe também já estava no nosso subconsciente. Não tem como resistir porque é algo que você conhece, sua mãe conhece, sua avó conhece. É novo, mas tá no seu sangue. Às vezes você nunca ouviu diretamente, mas indiretamente você ouviu... Na hora que o Delano trouxe isso, o funk de BH largou o freestyle e voltou pra essa coisa mais ancestral, mais brasileira”, conclui o MC.  

 Tal reviravolta coincide com a construção da cena no sentido territorial. Inicialmente identificado pelos bailes em quadras como a da Vilarinho, na zona Norte, com o avanço do novo milênio, o funk em BH começou a ocupar os bailes de favela, que se popularizaram e reuniram públicos e manifestações nas regiões da Zona Sul, como no Aglomerado da Serra, e em outras regiões da capital que hoje são marcadas como local de bailes famosos. Aliás, são muitos os artistas que carregam regiões de BH e região metropolitana em seu nome artístico, como DJ João da Inestan, DJ WS da Igrejinha, DJ Vinicim do Concórdia, Dj Anderson do Paraíso, PH da Serra, entre outros.

 MC Papo, que cresceu e mora na Zona Norte, onde uma forte geração funkeira trilhou seus caminhos através do freestyle nos anos 2000, explica a relação entre o resgate de Delano da música afrobrasileira e a expansão do público consumidor e produtor do funk em BH: “O cara da Serra é pagodeiro porque o pagode é do Brasil, entendeu? O cara da Zona Norte era funkeiro porque ele é doido. A gente era doido! Porque era uma coisa do rap americano. O funk brasileiro era o brasileiro tentando fazer rap americano dos anos 90, que era o freestyle e o miami bass. Aí quando o Delano chegou, permitiu que a galera que não era da Zona Norte entrasse no jogo e trouxe mais talento, trouxe os caras que tocavam cavaquinho, que eram do pagode”

Mulheres na voz

 Se, nas primeiras décadas do funk em Belo Horizonte, as artistas femininas tinham pouco registro nas páginas históricas do movimento, hoje MC Mika atesta o avanço das mulheres que empunham o microfone ou confeccionam as batidas enquanto DJ’s. "Já se foi o tempo em que só os homens podiam cantar o que vivem ou o que querem. Sou eu que escrevo minhas próprias letras, sou eu que elaboro basicamente tudo.”, afirma a cantora.


MC Mika. Crédito: Luciano Luns

“Então, nas cyphers, remixes, em projetos que têm vários homens, se eu vou ter 30 segundos ali na música, são 30 segundos que eu vou fazer ficar marcante, para quem escutar a música falar: 'olha, a Mika tá ali. Ela é uma menina, é a única menina que tá ali, e ela conseguiu o espaço dela.' Porque acaba que isso motiva outras meninas. Eu tenho certeza que tem várias MC'S, várias cantoras em Belo Horizonte que não apareceram por medo, vergonha, ou por falta de iniciativa mesmo". 

Ao lado de nomes como MC Morena, MC Nahara, MC Lina e MC Magrella, ela faz o jeitinho mineiro atravessar as fronteiras do estado, conquistando outros públicos em produções de outros gêneros musicais. Foi o caso de “Fode Bem”, música lançada em 2023 com o cantor de forró eletrônico Felipe Amorim, de Fortaleza, que também alcançou as 10 músicas mais ouvidas do Spotify no Brasil. 

“Conheci o Felipe Amorim em 2022 após ele fazer um remix com uma música que lancei (‘Porte da 40’). Depois de algum tempo, lancei ‘Cê fode bem’ em parceria com o DJ Escobar e outros artistas de BH. Gravei um vídeo de prévia e postei no Instagram. No mês seguinte, o Felipe me ligou e perguntou se podia fazer uma nova música com aquela letra. Claramente, eu topei né. Mas admito que, quando ele me mandou o resultado final, achei um pouco estranho. Até porque, era algo totalmente diferente do que eu tinha feito: uma mistura de funk, forró, piseiro, que eu mesma não consegui distinguir. Confesso que eu não estava esperando a repercussão que teve”, conta.  

Rumo aos 200 milhões de streaming, Mika olha para o processo com gratidão pelas alianças do funk mineiro a nível nacional: “Tudo isso é muito louco. Sou Nordestina, mas comecei minha carreira em Minas Gerais, formei minhas raízes aqui, e minha música de maior impacto foi feita com um nordestino, juntando tudo o que construí como mineira, mas, ao mesmo tempo, me levando à minha verdadeira origem.”

Assim, ‘tomando o seu tempo’, aos poucos, o funk de BH se ligou às suas próprias singularidades locais, e, paralelamente, conquistou ouvidos nacionais, reinventando suas próprias tradições. Agora, essa nova marca sonora não parece ser confundida ou esquecida facilmente.

“Olha por que eu acho que a gente ainda é muito tradicional: tem o estilo de São Paulo, tem o estilo do Rio de Janeiro, e a gente continua tendo o nosso. E o estilo deles não toca no baile daqui! Não é porque a gente não gosta, é porque, naturalmente, o DJ nem pensa em tocar aquelas músicas. Então a gente conhece, a gente escuta as música dos caras em casa. Mas quando toca às vezes no nosso Baile, é a ‘versão BH’”, conclui MC Papo.   

Passinho de BH 

Se a música é feita para dançar, a inventividade mineira também se apresenta com muita técnica e história construída em cada passo coreográfico que acompanha as batidas. O ‘passinho malado’ ou simplesmente ‘passinho de BH’ desenhou com molejo ímpar seus movimentos a partir das heranças do Miami Bass e se consolidou com vídeos virais de grupos de meninos e meninas performando-o nos bailes pós-2010.

Se as batidas do funk mineiro deslocam-se dos graves, os movimentos corporais também deslocam-se dos tradicionais quadradinhos de 8 ou dos passinhos do romano, entre outros, conferindo à expressão coreográfica uma especificidade que rendeu diversos tutoriais nas redes sobre como executar os movimentos (inclusive, no canal da produtora paulista Kondzilla).

Negona Dance, dançarino e coreógrafo do Favelinha Dance, pesquisador e diretor de 26 anos, explica que o funk enquanto dança tem diversas categorias. Em Belo Horizonte, criou-se um jeito específico de se dançar, mas que também irá encontrar diferenciações ‘de quebrada para quebrada’. “Muita gente vai lembrar do Miami (danças executadas ao som do Miami Bass), dos bailes antigos.


Negona Dance. Crédito: Marcio Rodrigues

E o que difere o Miami do Passinho de BH (ou passinho Malado) é exatamente a forma de executar: a corporalidade, a técnica”, classifica. “O Passinho é mais aterrado, mais encurvado, mais pro chão. A forma de rebolar no passinho de BH, tanto pros meninos, quanto pras meninas, é mais devagar, é mais gostosa. Mas se você vai em um baile no Aglomerado da Serra, é uma, e em outras quebradas é outra. Nas danças urbanas a gente chama essas diferenças de feeling ou de flow.” 

Ele também faz questão de pontuar que o Passinho de BH não é simplesmente um passo de dança, mas uma corporalidade ancestral negra que também é influenciada pelos bailes. “É sobre fundamento: teórico, técnico e de experiência. O funk é sobre vivência, sobre atravessamento. A base dele antes de se chegar e dançar, é a vivência que você tem dentro da cultura funk periférica. O feeling de fato vem a partir da maior sala de aula que tem, que é o baile funk”.

Já em relação ao boom do funk mineiro no TikTok, plataforma já conhecida também por trends virais de danças, Negona faz um contraponto. Para o dançarino e diretor, a expansão e o reconhecimento da qualidade musical local através das redes nem sempre serão acompanhados do reconhecimento da qualidade coreográfica dos artistas locais. “Quando a gente leva as nossas aulas de funk pro asfalto, pra fora da favela, é difícil porque existe uma corporalidade dentro da periferia que já tá no corpo, cresce junto com o corpo, é um feeling que já circula. Não acredito que o TikTok seja uma plataforma que faz efervescer tanto, de fato, o funk enquanto dança dos crias de favela. Ajudou muito a viralizar diversas músicas, mas, ainda assim, a gente precisa entender o que é técnica. Porque dancinha qualquer pessoa faz, mas a dancinha pega um passo de diversos estilos diferentes, e às vezes a pessoa que a executa não conhece o fundamento.” 

 Diante da vertente coreográfica do funk, que caminha lado a lado com o balanço de sucesso das músicas, o artista reforça sua crítica rumo a uma valorização dos dançarinos e dançarinas que constroem o movimento em Belo Horizonte em detrimento de uma postura sedenta por likes e clichês estéticos de uma produção majoritariamente masculina: “Os DJ’s tem que buscar o mesmo nível de qualidade técnica na dança. O funk está para além das mulheres no clipe, ele também precisa estar nesse lugar da qualidade de quem entende o que tá fazendo, que é de quem é cria - para o público poder se identificar e não só olhar pro palco e desejar mulheres. Dá pra juntar as duas coisas e fazer algo com uma qualidade de excelência.”