Guel Arraes não tem dúvidas de que, do jeito que estão as guerras urbanas no país, daqui a 30, 40 anos o cenário não será muito diferente do que é mostrado no filme "Grande Sertão", ainda em cartaz nos cinemas. "Se fizermos uma projeção no tempo, se essa guerra continuar, vai estar assim. Ninguém controla mais. Vão ter que cercar tudo", registra o cineasta pernambucano.

Ao adaptar a obra literária do mineiro Guimarães Rosa para o cinema, considerada até há pouco tempo "infilmável", Arraes assume que enveredar por uma leitura contemporânea foi uma enorme ousadia. No lugar do sertão rosiano entra em cena uma favela, apresentada como um local cercado por grandes muros - algo que nos faz lembrar da ficção científica "Fuga de Nova York".

"Essa conjunção de 'Grande Sertão' com periferia é como se fossem duas ousadias numa coisa só, que terminam de ser quando se juntam. Não é só trazer 'Grande Sertão' para a periferia. É fazer um filme da periferia com a linguagem poética, meio épica , quando você está acostumado com outro tipo de filme, com o favela movie", define Arraes.

"Normalmente (um filme de ação passada na favela) é feito de forma realista, e o nosso é quase um anti-favela movie na maneira de tratar, embora os temas e os acontecimentos sejam os mesmos.  Não só trazer Rosa para a periferia, mas dar à periferia um tom rosiano. A gente está acostumado a ver Guimarães no interior de Minas. E está acostumado a ver filmes de favela feitos realisticamente. Juntando-os, de certa maneira mexemos um pouco nos dois", assinala.

Um ponto de discussão do filme é o caráter mais pop dado para uma história densa, sobre descoberta e autoconhecimento do protagonista Riobaldo (vivido no filme por Caio Blat). "Embora tenha sido uma consequência, não foi uma decisão primeira. Não foi puramente um truque, um artifício formal só. A gente acha que a visão que Guimarães dá sobre a guerra do interior, do final do século 19, era muito adequada para buscarmos um olhar novo para a guerra urbana no Brasil, para que pudesse ficar quase naturalizada", defende.

Ele ressalta que o filme é contado por um ponto de vista novo em relação ao livro. "Riobaldo é um recém-chegado ao bando e vira chefe. A história é contada pelo ponto de vista dos guerreiros, não só da polícia, não só da comunidade", diferencia. Adepto do "quanto mais Guimarães, melhor", Arraes cita uma frase do livro ("Viver é muito pergioso") como a maior tagline do mundo, bem a propósito da narrativa que buscou imprimir. 

O diretor de "O Auto da Compadecida" - comédia de sucesso no milênio, baseado em texto teatral de Ariano Suassuna - afirma que a essência da obra do autor mineiro foi preservada. "Eu diria que está em praticamente tudo. A prosódia, principalmente, que foi uma decisão desde o início. E a geopolítica da história também. São os mesmos personagens, são as mesmas forças militares, políticas e econômicas. Você tem um enclave onde o Estado não chega, como eram os cangaceiros, os jagunços. E o Estado tentando chegar com o Zé Bebelo, que é um aliado das forças federais. São as mesmas forças. A mesma configuração".

A transposição marca a estreia de Arraes num filme adulto ("Romance", seu longa anterior, tinha elementos de comédia romântica). Uma opção que ele deposita na na idade. Com 70 anos, ele diz que "ela vai ajudando, acumulando experiências para ir arriscando". Lembra que 80% de seu trabalho foi na TV, com programas voltados para a família. "A tragicidade, a coisa épica, nunca tinha ido por aí", destaca.

Arraes teve um hiato de 12 anos entre a direção de "Romance" e "Grande Sertão", envolvendo-se mais com a produção televisiva. A retomada - em parceria com o roteirista Jorge Furtado - veio em função do "livro que mais gostou na vida". Ele confidencia que só conseguiu ler "Grande Sertão", do início ao fim, com 50 anos. "Sou um leitor mediano. Não sou um intelectual, mas já li bastante. Li toda a obra de Guimarães muito cedo, mas 'Grande Sertão'  foi mais tarde", admite.

No quesito elenco, lembra que Caio Blat fez o mesmo personagem em peça e filme dirigidos por Bia Lessa, ambos com título "O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho". A peça entrou em cartaz em 2017, enquanto o longa deve estrear neste semestre, após exibição em festivais. "Não é exatamente a mesma interpretação nem os mesmos textos. O Riobaldo que ele fez com Bia Lessa era incontornável, muito brilhante", explica.

Quem também trabalha em "Grande Sertão" é Luisa Arraes, filha do diretor, que também participou de "O Diabo na Rua", mas num outro papel. Agora ela vive Diadorim, personagem-chave da trama de Rosa. "Ela fazia um papel menor. Não tinha muito texto, mas teve momentos maravilhosos. Escolher Diadorim não é mole. E ela acrescentou muito ao personagem", revela.