O Brasil sufocava sob a égide de uma violenta ditadura militar quando, em 1970, Murilo Antunes deteve-se com incontida excitação sobre “Era um Ramo de Mato Seco”, nas preciosas páginas do Suplemento Literário de Minas Gerais. Tratava-se, como ele mesmo conta, do “primeiro poema que publiquei na vida, aos 20 anos”. O texto refletia aquele período opressivo, e, por conta disso, “trazia esse viés de combate”.

Aos 74 anos, Murilo mantém acesa a chama de uma juventude sonhadora e inconformada, que ajudou a moldar um dos mais expressivos acontecimentos da música brasileira, ao lado de gente como Milton Nascimento, Fernando Brant (1946-2015), Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Ronaldo Bastos e Márcio Borges, ícones do Clube da Esquina.

“Coisa boa não morre no tempo. Grosseiramente falando, acontece a mesma coisa com a música clássica que vem dos anos 1.800, 1.700, mesmo antes, e a gente ouve até hoje”, compara Murilo, ao refletir sobre a permanência no tempo do Clube da Esquina, alvo da homenagem do espetáculo “Nada Será Como Antes”, que toma o palco da Casa Outono neste sábado (17), e une poesia, música e literatura.

A ideia original partiu da cantora Débora Maré, que também sobe à ribalta. Ela e Murilo foram apresentados pelo pianista Wagner Tiso, outro nome incontornável do Clube da Esquina. Na época, Wagner e Débora realizavam um show juntos. “Travamos uma amizade, a Débora é muito atenta com essa junção de música e poesia”, elogia Murilo. 

Encontro

O letrista não conhecia a Casa Outono quando foi assistir à apresentação de Débora que ele define como “o embrião” do atual espetáculo. Mantendo o nome, eles decidiram incrementar a poesia, com a leitura de textos, a “Nada Será Como Antes”. A estreia do “projeto ampliado” ocorreu como parte da programação dos “Encontros Literários”, no Serro, interior de Minas Gerais, com Márcio Borges e Murilo se revezando na leitura de poemas em praça pública, enquanto a banda tocava o som.

Ao fim, eles tiveram “um bate-papo com a moçada”. “Ficamos três dias no Serro, e foi bem positivo. Isso de fazer poesia na praça é uma maravilha, e ainda escorado nessas canções espetaculares”, celebra Murilo, que criou um poema específico para a ocasião. “Fui construindo com trechos de músicas do ‘Clube da Esquina’”, conta. Além da novidade, ele se incumbiu da tarefa de selecionar uma compilação que abarca “os poemas definidores da minha trajetória”, diz, incluindo desde o inaugural “Era um Ramo de Mato Seco” ao mais recente, escrito no ano passado. 

Como se não bastasse, abriu-se a criações alheias, com textos de Bukowski, Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade e Roberto Benigni, diretor de “A Vida É Bela”. “Às vezes, dependendo do clima da plateia, coloco umas coisas, tiro outras”, revela Murilo. O mesmo dinamismo se verifica na música. “A banda tem muitos craques, e cada vez é como se a música fosse nova, com novos arranjos e interpretações”, garante o letrista.

Repertório

Da lavra de Murilo, comparecem no repertório “Nascente” e “Besame”, parcerias com Flávio Venturini, e “Tesouro da Juventude”, com Tavinho Moura, dentre outras. Ele se mostra à vontade com o formato das apresentações. “Sempre fiz isso, desde a década de 1980 que faço música com poesia, porque a música ajuda a embalar a poesia”, destaca Murilo, para quem “as canções do Clube da Esquina são eternas porque foram feitas com o coração”.

“E não é passado, com exceção do Fernando Brant, estamos todos vivos e continuamos compondo”, salienta. O poeta só lamenta o atual império das plataformas de streaming, mas nega o rótulo de nostálgico. “É uma observação, o streaming arrasou com o direito autoral de quem vive só de composição e não faz shows. O meu reduziu em cerca de 70%. Tenho mais de 250 músicas gravadas e vivia disso, agora tenho que me virar. Essas big techs estão acabando com a criação da MPB”, protesta.

Para Murilo, os novos ventos da tecnologia que levaram à derrocada das mídias físicas tiveram como consequência o fato de se ouvir “mal e porcamente os discos”. “Fomos bem acostumados a ouvir um disco lendo as letras, com todas as informações no encarte, apreciando as fotos”, encerra o artista, que, com somente 20 anos, escreveu: “A sagaz melodia do medo não resiste tempos”.

Serviço

O quê. “Nada Será Como Antes”, com Murilo Antunes e Débora Maré

Quando. Neste sábado (17), às 20h

Onde. Casa Outono (rua Outono, 571, Carmo)

Quanto. R$60 pelo site www.sympla.com.br