Na superfície branca, eleva-se a delicadeza azul de figuras meticulosamente esculpidas, mas a função era bastante prática. Oriundo da dinastia chinesa conhecida como Qing, a maior da história do país oriental, o “travesseiro” feito de louça tem quase 300 anos.
A parede ao lado conserva, em uma pequena prateleira de madeira, uma coleção de vidros que variam em forma e cor, mantendo uma sensação de leveza e movimento propiciada pela paleta que inclui verde-água, azul-marinho e vermelho-rubro. Os perfumeiros são quase todos venezianos, com exceção de um, vindo da República Checa.
Ao passar pelo imenso relógio carrilhão, cujos ponteiros continuam sua tarefa interminável, damos de cara com um artefato incompreensível. A base azul parece ondular com os fios dourados que a adornam, e, como se estivessem suspensos, cada canudo branco apresenta a imagem de uma flor exótica em seu corpo. Trata-se de uma cigarreira alemã.
Do mesmo modo, a licoreira italiana é toda pintada à mão, com ouro 24 quilates. As relíquias se espalham entre os séculos XVII, XVIII e XIX, e, ao penetrar o ambiente, tem-se a nítida impressão de retornar a um tempo distante, que nos envolve em memórias alheias, como no filme “Meia-Noite em Paris”, de Woody Allen.
Dono do antiquário Antiguidades e Adornos Savassi, que guarda essas preciosidades, Rodrigo Savassi, 57, não esconde a sua predileção. “As antiguidades chinesas são as mais valiosas, tem coisa dos anos 1.200”, conta ele, afastando de seu negócio o preconceito que se alastrou na era industrial com as produções da China. Ele aproveita a deixa para explicar a origem do “travesseiro” chinês.
“Não era para dormir à noite. Os chineses sempre foram meio escravizados, então eles trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam, e, na hora do almoço, alguém distribuía esses travesseiros, eles deitavam a cabeça e descansavam”, informa Rodrigo, para quem “todo chinês já nasce artista”.
“Eles começaram a arte há milênios. Uma porcelana chinesa de 500 anos pra cá já é muito bem feita. Quando você pega uma porcelana chinesa mal feita é porque ela é muito antiga, de quando eles estavam começando, e aí é que tem valor mesmo”, afirma ele, explicitando a essência dos antiquários: reunir, numa peça, beleza e história, urdindo uma fina relação entre o gesto humano e o tempo da natureza. Cada objeto, ali, reflete a cultura de um povo em determinada época, como o gosto dos alemães de 1920 em fumar cigarros, a ponto de oferecê-los numa espécie de bandeja aos convidados.
Os hábitos, no entanto, podiam não ser tão elegantes, a exemplo da escarradeira chinesa, que, pelo nome, revela seu préstimo. Os materiais variam tanto quanto as nacionalidades, incluindo cristal, bronze, banho de prata e porcelana de origem alemã, francesa, inglesa, árabe, chinesa, italiana, checa, japonesa e brasileira. “As porcelanas brasileiras também são de qualidade, a maioria aqui é de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul”, diz Rodrigo.
Ele não tem dúvidas de que o grande diferencial dos itens que compõem o seu antiquário “é a beleza”. “Tem gente que acha ‘barango’, principalmente os mais jovens, porque estão acostumados a coisas comuns. Mas olha a arte que tem nisso daqui!”, empolga-se, apontando uma portentosa ânfora alemã, cujo bojo serviu de quadro para uma pintura que capta duas camponesas pastoreando com suas ovelhas, encobertas por ramos de flores roxas e violetas.
Perfil
Esse cenário, no entanto, além de não ser homogêneo, pode estar mudando. Aos 34 anos, Pruciori Volponi adquiriu com a sogra a admiração pelas antiguidades, e, após o seu falecimento, ela e o marido decidiram dar continuidade à coleção.
“As pessoas têm preconceito, acham que quem gosta de antiguidades tem mais de 50 anos. Eu comecei acidentalmente, graças à minha sogra, e tomei gosto. Sento para tomar o meu café da manhã e fico no celular olhando, achando maravilhoso!”, compartilha Pruciori, natural de Teresina, no Piauí, e residente na capital mineira.
A fala explicita algo que Liliana Candiotto, 50, companheira de Rodrigo na vida e no empreendimento, tem presenciado de perto: a mudança do espaço físico para o virtual. Atualmente, 95% das vendas da loja são feitas pelo Instagram, o que permite comercializar com o Brasil inteiro e ainda rende histórias divertidas.
“É interessante como a tecnologia auxilia em um negócio de coisas antigas. Eu fico até achando bonitinho, porque tem muitas pessoas idosas, e elas às vezes têm uma certa dificuldade, ligam de vídeo sem querer, mandam emojis pelas mensagens”, diverte-se Liliana, que já foi acionada por uma cliente para interagir “através do celular da filha, porque ela não tinha Instagram”.
Embora o perfil de clientes se paute pela diversidade, Liliana constata que o público formado por “arquitetos, decoradores e padres” figura entre os mais assíduos. Gaúcho de Porto Alegre, radicado em BH desde 1982, Ricardo Villela, 67, mantém o antiquário Peça Rara apenas no mundo virtual.
Assim como Pruciori, ele foi apresentado a esse universo pela ex-sogra. Em seu casamento, ele e a ex-esposa foram presenteados com “móveis e objetos de decoração lindos, só antiguidades”, recorda. Havia cantoneiras e até um autêntico sofá Luis XV. Formado em Publicidade, Villela atuou como ator e modelo antes de transformar o interesse em sustento.
Tempo
“Hoje em dia, com o mundo globalizado, vendo muito para fora do país”, diz ele, que já negociou antiguidades para países como Suíça e Eslováquia. Lustres, tapetes persas e móveis dos anos 1920 e 1930 estão entre os mais procurados em seu site. “As pessoas ficam doidas! Tem estatuetas lindíssimas. A maioria dessas peças antigas era muito cheia de detalhes, às vezes um pequeno desenho no pé da mesa, um fio de ouro”, exalta Villela.
Rodrigo Savassi, que iniciou seu empreendimento em 2006, aponta que “tudo era feito com muito zelo, artesanalmente”. “Era uma peça única, com identidade”, postula. Liliana corrobora, tecendo uma comparação entre esse passado de glórias e o presente homogeneizado pela Revolução Industrial.
“As casas hoje não têm mais cara de casa, parece escritório, é uma coisa fria, impessoal”, opina. Outro ponto levantado por Rodrigo, que possui itens de R$70 a R$9 mil em seu acervo, é a valorização comercial. “
Se você compra uma peça nova por R$200 e uma antiga pelo mesmo preço, daqui a dez anos a nova está valendo R$30 e a antiga R$500”, garante, o que seria resultado de uma perspectiva socioeconômica e cultural imposta pelo avanço do capitalismo. “Antigamente, as coisas eram feitas para durar, hoje elas são feitas para acabar”, finaliza o antiquarista.
Aficionados por antiguidades
A rua Itapecerica, na Lagoinha, é célebre por abrigar um número incontável de lojas de antiguidades. Foi lá que Elio Julião, 76, garimpou muitas das relíquias entregues ao seu antiquário, localizado no bairro Sagrada Família, região Leste de Belo Horizonte. Nascido em Sete Lagoas, o professor de Educação Física mudou-se para a capital mineira em 1974.
Após a aposentadoria, pressionado pela família a dar uma solução para as bugigangas que acumulava em casa, ele criou a Julião Antiguidades, que serviu tanto para “ocupar o tempo com uma atividade que me proporcionasse novos conhecimentos e contato com as pessoas, sem rigidez de horário”, quanto para transformar o seu “vício de acumulador em um negócio”, constata ele, que demonstra um carinho especial pelas “peças feitas pelo meu saudoso pai”, João Marques de Souza, que atuou como ferreiro da Central do Brasil, linha férrea que conectava Rio de Janeiro, São Paulo e Minas.
“Eram peças feitas para desenvolver o seu trabalho”, conta Julião, que também destaca um facão, um cabideiro e um socador de alho de madeira, construídos pelo patriarca. Cartas originais do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e moedas raras integram-se a essas predileções.
Melissa Amorim, 48, é dona do antiquário San Martin, e afirma que está sempre “à procura de peças raras e antigas”, tais como “as feitas de porcelana do século XIX, opalina, murano, cristais, e mobiliários do tipo carro de boi, cadeira de balanço adulto e infantil, berços, cristaleiras”, enumera. Entre seus clientes, há “colecionadores de algo específico, aqueles que querem dar um presente e os que desejam decorar a casa”.
Julião convive com jovens, adultos e idosos à caça de “louças, porcelanas, cristais, móveis, luminárias e panelas de ferro”. Ele se considera, acima de tudo, “um conservador da história”, e observa que “o contexto, o tempo e a originalidade definem o valor de cada peça”, citando relíquias como um sino de bronze, um porta guarda-chuvas de ferro e uma escultura de pedra.
Melissa, que se orgulha de viver e criar os filhos por meio do antiquário, reflete sobre os desafios contemporâneos para a profissão, entre eles “a crise econômica, a pandemia, os juros altos, a carga tributária absurda para o pequeno empreendedor e a enchente que atingiu a praça Marília Dirceu”, em 2020, onde seu antiquário está localizado.
Para Julião, a saída é “perseverar e renovar sempre”. “A maior recompensa é a presença e a satisfação com que os clientes, visitantes, admiradores e parceiros entram e saem da loja, na certeza de que foram muito bem recebidos”, assegura ele, que pretende “abrir uma nova loja e aumentar o volume de venda”.
“Eu vejo o mercado de antiguidades bastante oscilante, com muita oferta e pouca procura”, analisa Julião. Já Melissa enxerga na “crescente digitalização” uma possibilidade promissora para seu negócio, permitindo a “divulgação para todo o país”. “Hoje, parte considerável da minha venda é para pessoas de outros Estados. Espero que, no futuro, os jovens também venham a valorizar as antiguidades. Colocar uma peça antiga em um ambiente moderno valoriza, embeleza e traz exclusividade”, assinala Melissa.
Histórias curiosas incluem Einstein e coleção de galinhas
Ele nunca tinha visto aquele sujeito, que o fitou bem nos olhos, colocou a mão no queixo, e disparou: “Só pode ser o Einstein ou o personagem do filme ‘De Volta para o Futuro!’”, diverte-se Elio Julião, ao relembrar a história com ares de anedota.
Na ocasião, ele tampouco deixou por menos, devolveu o olhar compenetrado, e respondeu: “Ganhei meu dia!”. “Caímos na gargalhada”, recorda Julião, que guarda sincera gratidão a todos os clientes, que, ao visitarem o seu antiquário, compartilham com ele o apreço pelas antiguidades, e cujo valor “vai muito além” do preço monetário.
Proprietária do antiquário San Martin, Melissa Amorim jamais se esqueceu da cliente que tinha por hábito “colecionar galinhas de vidro, que, antigamente, serviam para armazenar manteiga”, conta. O gosto pela ave específica passou a contemplar qualquer objeto com a sua figura simpática, “seja louça, vidro ou porcelana”.
Rodrigo Savassi, dono da Antiguidades e Adornos Savassi adquiriu o seu imponente relógio carrilhão “graças a uma senhora que se mudou para um apartamento menor, onde ele não cabia”. Ele mesmo se angustia com o fato de muitas de suas relíquias extrapolarem o espaço físico tanto de sua casa quanto de seu negócio. “Não tem graça deixar guardadas coisas tão bonitas”, justifica Rodrigo.
Companheira no empreendimento, Liliana Candiotto lamenta que a nova geração nem sempre dê o devido valor às antiguidades. “Quando a gente garimpa essas relíquias, percebemos que, quando o pai ou a mãe falecem, os filhos querem se desfazer, ficam com uma ou outra peça, mas a grande maioria passam pra frente”.
Nesse quesito, ao menos, a piauiense Pruciori Volponi parece constituir uma exceção à regra. “Eu estou aprendendo ainda, porque quem entendia muito de antiguidades era minha sogra”, afirma Pruciori, que, todavia, agora sempre que viaja visita um antiquário. E, dificilmente, “poderia mesmo dizer quase nunca”, sai com as mãos abanando. Elas vão “repletas de história, com um artigo raro, cheio de beleza, e único”.