Evandro Passos é um daqueles casos raros de pessoas que logo cedo se reconhecem e, de certa maneira, se fundem a uma expressão artística. 

Nascido em Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, ainda na infância sentiu seu corpo vibrar nos ritmos dos festejos populares. Já em Belo Horizonte, para onde se mudou com a família na adolescência, nos anos 1970, entendeu que, mais que o apelo religioso, era a dança que o seduzia. Mais especificamente, a dança afro-brasileira, que conheceu ao assistir, quase por acaso, a uma performance de Marlene Silva em frente ao Palácio das Artes. Em uma época em que manifestações artísticas de matriz africana eram vistas de forma depreciativa, houve, sim, quem, de passagem, ofendesse a artista. Passos, por outro lado, viu nela um destino. 

Destino que, hoje, com honrarias, o faz ganhar o mundo, ao mesmo tempo que faz a capital mineira ver uma de suas principais festas, o Carnaval de rua, ecoar a expressão de arte que antes hostilizou. 

Não por outro motivo, agora, celebrando 43 anos de carreira como dançarino, Passos convoca a cidade para uma celebração levando, mais uma vez, a sua dança para a rua – ou melhor, para o parque.  É o que o artista e pesquisador propõe com o seu “aulão-espetáculo”, que integra a programação da 9ª Virada Cultural de Belo Horizonte (VCBH). “Estaremos com cinco percussionistas e nossa ideia é que o público, de qualquer idade, participe. Até sugiro que as pessoas venham com roupas leves para o Parque Municipal, ao lado do Teatro Francisco Nunes”, comenta, indicando que o evento tem início às 14h.

Evandro Passos se prepara para 'aulão-espetáculo', que integra a programação da Virada Cultural de BH
Evandro Passos se prepara para 'aulão-espetáculo', que integra a programação da Virada Cultural de BH | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Depois, Passos começa a se preparar para seguir rumo à Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis, na capital francesa. “Irei na primeira semana de outubro e fico por lá até 31 de dezembro”, detalha, mencionando que optou por ficar um trimestre, embora o convite, inicialmente, fosse para uma estada maior, de seis meses – “eu já tinha agenda no Brasil e não queria adiar”, explica. 

Durante o período, no contexto de um “doutorado-sanduíche”, como é chamado o programa que permite que se realize parte do processo de qualificação em uma instituição de ensino superior no estrangeiro, Passos vai pesquisar como a dança afro chega à França e, simultaneamente, levar sua pesquisa sobre a dança afro-brasileira para a universidade do país.

“Serão três meses palestrando, estudando, levando para Paris não só o meu projeto de pesquisa, como também o livro infantil ‘O Menino Coração de Tambor’, de Nilma Lino Gomes, que conta minha história e, desde o ano retrasado, integra o kit de livros para escolas municipais de Belo Horizonte, e o livro ‘Dança Afro-Brasileira – Identidade e Ressignificação Negra’, lançado no ano passado como resultado da minha dissertação de mestrado na Unesp (Universidade Estadual Paulista)”, detalha.

Do exótico ao popular

Doutorando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Evandro Passos celebra que, hoje, como evidencia sua movimentada agenda, já não encontre fronteiras para falar sobre o tema para o qual dedicou boa parte de sua vida. 

“É com muito prazer que levo a dança afro e afro-brasileira para várias instituições, nacionais e internacionais. Sobretudo porque sei que, há poucos anos, era algo impossível, por ser uma dança exotificada, alvo de preconceito, vista como folclórica”, examina, pontuando que, com o seu trabalho, vai no caminho oposto, mostrando que este é um estilo artístico que goza de legitimidade e vem conquistando mais prestígio.

História de Evandro Passos foi contada no livro 'O Menino Coração de Tambor' | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
História de Evandro Passos foi contada no livro 'O Menino Coração de Tambor' | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Em Belo Horizonte, informa, a vertente chegou na década de 1970, por meio da mestra Marlene Silva, uma proeminente discípula de Mercedes Baptista, ex-bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que fundou, nos anos 1950, o seu Ballet Folclórico após passagem pelo seminal Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento. 

O discípulo e sua mestra

“Eu fui aluno da Marlene Silva, sou cria direta dela”, orgulha-se Evandro Passos, lembrando dos caminhos que o levaram, primeiro, a se apaixonar pela dança e, depois, a conhecer a sua mestra. “Eu sou mineiro de Diamantina. Morei lá até os 16 anos e fui muito influenciado pelos festejos populares da cidade, como as Pastorinhas, as Folias de Reis, as festas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”, enumera. 

“Cheguei a BH em 1976, quando tive um primeiro contato com o grupo folclórico Aruanda, que integrei antes de expandir minha atuação para outras escolas de dança”, rememora, dizendo que foi ao fazer esse movimento que sua história cruzou com a de Marlene. “Fui convidado para uma performance de dança afro-brasileira realizada por ela, na porta do Palácio das Artes. E, imediatamente, quando vi toda a potência daquele corpo, fora dos padrões da dança clássica, não tive dúvida de que aquilo era o que eu queria para a minha vida”, reconhece. 

A partir de então, o dançarino passou a frequentar a academia dela, na rua Carangola, 44, no bairro Santo Antônio, ao lado da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (Fafich/UFMG). “Depois disso, não parei mais. Em 1982, criei a minha própria companhia, a Bataka, que significa ‘ritmo dos tambores’, e passei a ministrar aulas, coreografar”, comenta. 

Uma festa afro-brasileira

Se, de um lado, ele se reconhece um discípulo de Marlene, de outro, o dançarino sabe hoje da responsabilidade de ser um mestre. “Já temos multiplicadores a partir de mim. E uma das expressões mais simbólicas e importantes dessa multiplicação é justamente a profusão e força dos blocos de Carnaval de rua da cidade, que se tornou uma grande festa afro-brasileira, na qual a maioria dos blocos recorre à percussão com tambores”, avalia. 

Dançarino e coreógrafo mineiro, Evandro Passos vai passar temporada em universidade parisiense | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
Dançarino e coreógrafo mineiro, Evandro Passos vai passar temporada em universidade parisiense | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Para o dançarino, esse fenômeno começa com a semente plantada por Marlene Silva, nos anos 1970, e cultivada por seus tantos discípulos. “Atualmente, noto multiplicadores que são diretores percussivos de grupos como Angola Janga, Rei Momo e Magia Negra, que passaram pelo Bataka”, frisa. Ele ainda lembra que, quando a artista começou a se apresentar na capital mineira, chegou a ser alvo de ofensas racistas. 

“Hoje, no entanto, BH está dançando e tocando tambor na rua, durante o Carnaval, em um movimento importantíssimo, que resgata a dança afro-brasileira desse lugar do exótico para o lugar do popular”, comemora.

Multiplicação

Movido por um ideal de multiplicação, o trabalho de Evandro Passos, como se vê, desconhece fronteiras. Quando conversou com a reportagem de O TEMPO, em uma entrevista por telefone na semana passada, ele estava em Mato Grosso do Sul. “Estou trabalhando a dança afro-brasileira na cena artística contemporânea. A turma aqui no Sesc Campo Grande tem quase 50 alunos”, vibrou. No sábado (17), antes de voltar a BH, ele fazia uma parada em Montes Claros para um workshop que aborda o tema central de seu último livro: a dança afro e as identidades.

Esse movimento, claro, é percebido também na academia. Passos trouxe o tema para a sua monografia, na graduação, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); para sua dissertação, no mestrado, em São Paulo; e, agora, para sua tese, no doutorado-sanduíche, entre Bahia e Paris. “Acho importantíssimo que os cursos de dança e de teatro tenham material de apoio sobre a dança afro-brasileira e sobre nossos mestres. Por isso, quero fazer minha tese de doutorado, no futuro, virar um livro também”, antecipa.