Há dois anos e dois meses à frente da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte (SMC), Eliane Parreiras exalta a infraestrutura cultural da cidade, que classifica como “extraordinária”, e defende a necessidade de uma estruturação efetiva do chamado Sistema Nacional de Cultura, atribuindo definições mais precisas sobre os papéis dos municípios, dos Estados e do da União na gestão, na política e no investimento cultural. O tema, aliás, está no radar da gestora, que, desde julho do ano passado, preside o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Cultura das Capitais e Municípios Associados. 

Para ela, o assunto ganhou ainda mais força a partir da descentralização de recursos federais para os Estados e municípios, possibilitada pela Lei Paulo Gustavo (LPG) e Política Nacional Aldir Blanc (PNAB). “Temos trabalhado de uma maneira muito integrada, não só no sentido de fortalecer o papel dos municípios, como também de intensificar ainda mais esse diálogo com o Ministério da Cultura”, garantiu Eliane em entrevista ao vespertino Timeline, da FM O Tempo, na quinta-feira (22).

Na conversa com Fabiano Fonseca, editor do Magazine, caderno de cultura de O TEMPO, a secretária fez um balanço sobre as políticas de fomento do município, anabolizadas pelos recursos federais provenientes da LPG e PNAB, admitindo que, com as medidas, novos desafios se impuseram. Ela também exaltou o contínuo aumento de público em espaços e atividades culturais capitaneados pela pasta sob o seu comando. Outro assunto que entrou na roda foi a chegada, em agosto, de Bernardo Rocha Correia à presidência da Fundação Municipal de Cultura (FMC). Anteriormente, desde janeiro, Eliane acumulava os dois cargos, atuando simultaneamente como secretária da SMC e presidente da FMC. Por fim, com mais de 30 anos dedicados à gestão cultural, ela garante: “O que me move é poder continuar trabalhando pela cultura, pela cultura do meu país, da minha cidade, do meu Estado”.

Leia a entrevista na íntegra:

1. Como tem sido feita, na sua gestão, a distribuição de recursos com foco no fomento à cultura? O primeiro aspecto que acho importante falar é que a gente tem trabalhado em cima de algumas diretrizes. A primeira é gerar oportunidades. Mas não adianta só gerar oportunidades se eu não garantir acesso, que só é possível por meio de uma comunicação democrática, acessível, pública, com capacitação, formação e mobilização. E, por fim, precisamos também garantir participação, na elaboração e na concepção dos editais, das diretrizes, das linhas de investimento. Participação e monitoramento dos resultados para acompanhamento, para transparência com a sociedade. Então, é sobre essas diretrizes que a gente tem procurado trabalhar o fomento como um todo. 

2. Em especial os aportes emergenciais, que a cidade ganhou com a Lei Paulo Gustavo (LPG) e a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB). A primeira, por exemplo, trouxe um aporte de R$ 19 milhões para o município. Como está o andamento dos projetos aprovados nos três editais da LPG? Sobre a LPG e a PNAB, que surgem em um contexto emergencial, mesmo sendo aplicada um pouco depois do período da pandemia (de Covid-19), ambas estão sendo trabalhadas a partir dessas diretrizes que mencionei e sendo entendidas em um horizonte sistêmico, pois esses recursos são adicionados aos que já são garantidos na política pública de Belo Horizonte. Enfim, à lei municipal de incentivo à cultura – que inclui o fundo municipal e o modelo via incentivo fiscal, continuado ano após ano –, tivemos acrescido o recurso proveniente da LPG e da PNAB, cuja gestão representou um grande desafio para todos os municípios brasileiros. O que houve, nesses casos, foi uma descentralização de recursos para os Estados e municípios operacionalizarem, com regras, evidentemente. Essa ação trouxe seus desafios em questões legais, de tempo e etc. E o que a gente viu foi uma participação muito grande das pessoas. Tivemos quase 150% de aumento no número de inscrições e, neste momento, estamos fazendo avaliação dos resultados de quem foi contemplado na LPG.  Já no caso da PNAB, nós estamos na etapa de consultas. A gente fez várias caravanas culturais, várias consultas públicas para pensar nos editais, no modelo de investimento. Neste ano, a gente vem com aproximadamente R$ 51 milhões de recursos já garantidos, com chances de aumentar. No ano passado, foram cerca de R$ 50 milhões. E estamos a pleno vapor para que mais pessoas participem e usufrua da vida cultural. A gente, inclusive, faz esse convite para todo mundo colaborar com a política pública da cultura. 

3. Secretária, desde o ano passado, a senhora preside o Fórum Nacional de Secretários de Cultura e Municípios Associados. Me parece que a sua eleição e sua gestão à frente do Fórum demonstram o protagonismo belo-horizontino neste aspecto da representação dos municípios junto ao Governo Federal e ao Ministério da Cultura. Como tem sido esse trabalho? Primeiro, acho que essa eleição é consequência de termos, em BH, uma política pública para a cultura já consolidada. Segundo, como Fórum, acho que o nosso primeiro desafio é demonstrar a importância do municipalismo e da gestão municipal para o desenvolvimento econômico e social sustentável, pois é na cidade que a vida acontece. No Fórum, ligado à Frente Nacional de Prefeitos, incluindo municípios de médio porte e as capitais, temos trabalhado de uma maneira muito integrada, não só no sentido de fortalecer o papel dos municípios, como também de intensificar ainda mais esse diálogo com o Ministério da Cultura, que tem sido extraordinário. A gente tem sido chamado a participar das políticas públicas, da elaboração e das revisões dos planos e do próprio Conselho Nacional de Política Cultural. O tema que abordamos anteriormente, de legislações nacionais, como a LPG e a PNAB, inclusive, já demonstra a importância dos municípios nesse ecossistema. E, com isso, a gente avança em um processo importante: a definição clara sobre os papéis dos municípios, dos Estados e do da União na gestão, na política e no investimento cultural. Essa experiência, esse momento que a gente vive, é muito rico para que possamos estruturar efetivamente o chamado Sistema Nacional de Cultura. E tem outra experiência extraordinária que o Fórum possibilita que é a troca de boas práticas e soluções entre os municípios. 

4. Secretária, desde janeiro, a senhora acumulava as funções da secretaria com a presidência da Fundação Municipal de Cultura, que agora passa a ser gerida pelo Bernardo Rocha Correia. Como foi esse primeiro semestre, quando a senhora acumulou os dois cargos? Esse primeiro semestre foi realmente muito intenso e importante, porque marcou a consolidação de vários processos que estamos trabalhando nesses dois anos e dois meses da minha chegada à Secretaria de Cultura. Uma dessas coisas, que acho importante, é a continuidade do aumento de público nos nossos espaços e nas nossas atividades. No ano passado, tivemos 30 mil atividades executadas diretamente pela SMC e FMC. Esse ano a gente continua em uma curva ascendente, inclusive de público. Tivemos edições maravilhosas do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) e do Festival Internacional de Teatro (FIT), por exemplo. Agora, estamos na expectativa para a Virada Cultural (realizada neste sábado e domingo, dias 24 e 25). Anteriormente, tivemos outros eventos relevantes, como a inauguração das esculturas em homenagem a Lélia Gonzales e Carolina Maria de Jesus, algo que foi muito importante para fortalecer e que se desdobrem em ações vinculadas não só ao apoio à literatura, mas, especialmente, à questão da afirmação da política voltada à cultura negra. Além dessas ações consolidadas, estamos em processo de restauração do Museu de Arte da Pampulha (MAP) e da construção de uma reserva técnica que vai abrigar o seu acervo – ação que vai dar frutos já neste semestre. O Espaço Multiuso, no Parque Municipal, é outro projeto que teve obras retomadas. Ou seja, são ações estruturais, que vieram de um período de aceleração no primeiro semestre, que a gente fica muito orgulhoso.

5. E, agora, com Bernardo Rocha Correia à frente da FMC, como tem sido o diálogo entre Secretaria e Fundação? Estamos falando de uma relação de interdependência, seja no pensamento e na política pública como um todo, seja nos processos, procedimentos e atuação. Agora, no começo de agosto, tivemos a chegada do Bernardo Correia, que tem grande experiência na gestão pública. Nós dois tivemos uma oportunidade de trabalhar juntos, indiretamente, quando eu era secretária de Estado de Cultura (Secult) e, ele, vice-presidente da Fundação Clóvis Salgado (FCS). Enfim, o Bernardo vem para reforçar a equipe para que a gente possa ter ainda mais entregas. Estamos no último ano de gestão, ano do fechamento, das conclusões, da organização dos processos para os próximos quatro anos. E ele chega, agora, com muito gás, já mergulhado na Virada Cultural e com um compromisso assumido de continuidade das políticas públicas.

6. Eliane, seu currículo soma mais de 30 anos de atuação na gestão cultural, no setor privado e público, com passagem na presidência da FCS, no Instituto Cultural Usiminas, Secretaria de Estado de Cultura e, agora, na Secretaria Municipal de Cultura de BH. A partir dessa experiência, gostaria de te ouvir sobre a participação das mulheres à frente de cargos públicos na gestão cultural. Muita gente fala que sorte não existe né? Mas acho que tive sorte, sim, de estar em lugares e com gestores, nos momentos em que fui subordinada, que tiveram uma percepção muito coerente tanto da questão cultural quanto do aspecto da mulher dentro dessa gestão. Então, eu, pessoalmente, me sinto privilegiada, porque acho que essa não é a realidade em todos os lugares. Acho que ainda há, em muitos ambientes, barreiras para as mulheres, que encontram dificuldades para alçar determinados espaços, ainda tradicionalmente ocupados, em sua maioria, por homens – como na política. Claro que, sem dúvida, houve um aumento da presença feminina e uma sensibilidade maior para o entendimento da    importância da gente ter equidade em cargos de liderança. Hoje, mais pessoas entendem que essa equidade não é só uma bandeira ou uma questão de uma militância, mas algo que traz benefícios reais para o ambiente, que fica mais rico, mais diverso, mais capaz. Mas nada disso anula o fato de que a gestão pública continua sendo muito desafiante, sim, para as mulheres. E, no ambiente cultural e artístico, ainda temos segmentos que são muito difíceis para as mulheres estarem, como as áreas técnicas, de direção, e gestão de grandes equipes. Nesse sentido, a gente entende que as políticas públicas precisam atuar, implementando ações, como de capacitação. E é o que temos feito.  

7. Para finalizar, tem alguma coisa, na sua gestão, que a senhora ainda gostaria de fazer? Belo Horizonte tem uma rede de infraestrutura cultural extraordinária. E acho que a gente tem, muitas vezes, dificuldade de chegar na população como um todo. Então, meu sonho é conseguir trabalhar mais essa participação – e a gente persegue isso muito e já teve várias conquistas. Mas os desafios de comunicação e de mobilização, como eu disse, são muito grandes. Do ponto de vista pessoal, me sinto uma pessoa muito privilegiada, porque já tive essas experiências em todas essas instâncias, em todos esses modelos de trabalho. Hoje, o que me move é poder continuar trabalhando pela cultura, pela cultura do meu país, da minha cidade, do meu Estado. É continuar empenhada para que a gente promova, sempre e cada vez mais, a difusão, o acesso e a democracia cultural, seja no ambiente público, seja no ambiente privado, porque a vida é muito mais bonita com a arte e a cultura.