“Não me peça de graça a única coisa que tenho para vender.” O compositor Murilo Antunes usa a frase que ouvia frequentemente do amigo Fernando Brant (1946-2015) para protestar contra a forma que as plataformas de streaming de música pagam os direitos autorais aos artistas.

Letrista do Clube da Esquina, ele viu o faturamento cair vertiginosamente com o avanço das big techs. “Tenho mais de 250 músicas gravadas, mas minha renda diminuiu em 70%. Os artistas de renome fazem apresentações e têm a renda que vem dos shows, mas o que as pessoas não entendem é que nós, compositores, não temos esse tipo de arrecadação. Com isso, perdemos muito dinheiro”, lamenta.

No passado, a principal fonte de renda de artistas como Antunes vinha da venda dos discos e da execução das músicas nos rádios e na TV. Mas o cenário mudou, e hoje o streaming é que domina o mercado musical. “Essas plataformas pagam um valor irrisório, de centavos. As big techs solaparam os nossos ganhos. Seria ótimo se houvesse um pagamento justo e honesto”, comenta Antunes que, para complementar a receita, também atua como publicitário.

 

Principal plataforma de streaming de música, o Spotify revelou que, desde abril deste ano, foram implementadas novas políticas, que distribuem “melhor pequenos pagamentos que não chegam aos artistas”. Para conseguir receber pela execução das músicas, os artistas devem ter faixas que atinjam pelo menos 1.000 streamings durante 12 meses.

O valor médio pago por cada faixa é de US$ 0,03 por mês. Convertendo para real, o valor não chega a R$ 0,20. Mas essa quantia pode ser variável, explica o cantor e compositor Makely Ka. “O valor pago varia se o play for feito por um pagante [usuário que assina a plataforma] ou por alguém que usa a plataforma gratuitamente. A planilha de pagamentos do Spotify é muito obscura, ninguém sabe exatamente como ele funciona”, comenta. 

Makely conta ainda que, nos últimos anos, o Spotify lançou diversos artistas que não existem. Ou seja, perfis fakes, que criam arranjos genéricos, cujo objetivo é render dinheiro para a própria empresa. O artista, a propósito, tirou sua obra do Spotify em discordância com a política de remuneração adotada pela empresa, deixando apenas uma música em que, não por acaso, canta: “Eu não estou aqui/ se quiser me ouvir/ vai ter que saltar para outra plataforma.”

Ele diz que o valor que recebia do Spotify não era suficiente nem para pagar a mensalidade da própria plataforma. “Não saí de todas, mas deixei a maior de forma simbólica. Como o Spotify é a maior big tech da indústria da música, ela acaba determinando a regra para todas as outras, que adotam a mesma política de repasse”, argumenta. 

Makely tem mais de 300 músicas gravadas, além de canções deles feitas para o cinema, para o teatro e para a dança. Seu faturamento, além dos direitos autorais e dos shows, vem da venda de CDs. “Um CD vendido representa mais do que a arrecadação inteira que eu tinha no Spotify. Ainda comercializo muita mídia física, porque alguns fãs, mesmo sem o tocador, compram o produto para tê-lo em casa. Além disso, sempre penso que, há 20 anos, as plataformas não existiam. Pode ser que, daqui a 20 anos, elas também não existam. Daí, se elas fecharem, onde estarão as obras?”, questiona.

É possível mudar esse cenário?

Apesar de o cenário parecer desanimador, existem medidas e políticas públicas essenciais para proteger os direitos autorais em um mundo cada vez mais digitalizado. O músico e compositor Makely Ka avalia que é fundamental haver uma atualização na legislação que fala a respeito de direito autoral. “É necessária uma revisão, porque a legislação foi criada em uma época diferente da que estamos vivendo, sem streaming nem inteligência artificial”, salienta. 

Além disso, o diretor da União Brasileira de Compositores (UBC), Geraldo Vianna, pontua que deve ser adotada uma política voltada para a cultura, com “leis de incentivo que exijam o pagamento de direitos autorais para gravação de uma obra e não confundam com direitos de execução pública, quando apresentadas em um show”, sinaliza.

Ele também pede por “produtores que não se utilizem de medidas intimidatórias com exigência de liberação de repertório como condição ‘sine qua non’ para participação em projetos que administram”, além de artistas que, “antes de mais nada, respeitem os autores, colegas e a si mesmos”. 

Makely Ka tirou todas as músicas do Spotify. Crédito: Rosa Antuña/divulgação 

 

O letrista Murilo Antunes também acredita no trabalho das associações de música para um novo panorama. “As organizações que representam os músicos brasileiros estão lutando para abrir um novo caminho, mas é um trabalho longo. Temos algumas entidades fazendo isso, como a UBC, a qual faço parte. As grandes empresas de tecnologia, as big techs, se beneficiam da situação atual e perderiam dinheiro se essa mudança acontecesse, mas precisamos ter mais poder para lutar por aquilo que é justo”, comenta.

Inteligência artificial e direitos autorais

A inteligência artificial chegou – e tudo indica que veio para ficar. As chamadas de IAs Generativas (uma categoria da inteligência artificial) são capazes de criar conteúdos originais, como textos, imagens, vídeos e códigos, em resposta a um simples comando. É batalha perdida brigar contra a IA, mas, diante de circunstâncias em que são criadas músicas aos borbotões a partir do “nada”, é inevitável se perguntar até onde é lícito produzir obras fazendo uso da inteligência artificial.

O debate chegou até grandes artistas do pop, como Billie Eilish, Katy Perry, Nicki Minaj e Stevie Wonder. Eles estão entre mais de 200 artistas que, em abril deste ano, assinaram a carta “Stop Devaluing Music” (“Pare de Desvalorizar a Música”), em que apelaram aos desenvolvedores de IA, empresas de tecnologia, plataformas e serviços de música digital “para que cessem o uso de Inteligência Artificial (IA) para infringir e desvalorizar os direitos dos artistas humanos.”

Os artistas salientaram que entendem o potencial da IA para promover a criatividade humana, mas, que, quando usada irresponsavelmente, “representa enormes ameaças à nossa capacidade de proteger a nossa privacidade, as nossas identidades, a nossa música e os nossos meios de subsistência.” Tanto o diretor do União Brasileira de Compositores, Geraldo Vianna, quanto o CEO da Onimusic e a Editora Adorando, Nelson Tristão, concordam que falta uma legislação específica que regule essa tecnologia.

“Para os direitos autorais, o grande desafio será a busca de uma legislação que garanta todos os direitos, já existentes, do criador, frente às diversas formas de utilização da Inteligência Artificial Generativa. Já se discute em todo o mundo as formas de preservação da obra e que direitos cobrar”, afirma Vianna.

“Mas acredito que vá demorar ainda um tempo para que se estabeleça uma legislação. Uma coisa boa para ser feita é chegar até políticos e legisladores, mais afeitos à arte, para mostrar as dificuldades e virtudes da AI. Dessa maneira, eles criam consciência de como ela funciona, e, no momento criarem a lei, já estarem familiarizados a ela”, indica Tristão.