No centro de uma escultura, uma mulher segura um bebê em seus braços. À sua esquerda, seu filho menor, de olhar perdido. Do lado direito, a imagem se repete, mas com uma criança mais crescida. Posicionado logo atrás da família, está o patriarca, que estende sua enorme mão para o alto como se pedisse por algo – muito provavelmente por comida.

Todos eles têm uma mesma marca, ossos que sobressaltam a pele, e sustentam um olhar de dor. É que a fome machuca, fere. A obra “A Fome e o Brado” (1948), do recifense Abelardo da Hora (1914-2014), abre a exposição “Arte Subdesenvolvida” e apresenta o tom da mostra de uma só tacada. A exposição ocupa o terceiro andar e o pátio do CCBB-BH a partir desta quarta-feira (28) e segue até o dia 18 de novembro.

Obra "A Fome e o Brado", de Abelardo da Hora. Foto: Fred Magno/O TEMPO

 

Com curadoria de Moacir dos Anjos, “Arte Subdesenvolvida” exibe obras produzidas no Brasil entre os anos 1930 até início dos anos 80, quando países econômica e socialmente vulneráveis passaram a ser chamados de subdesenvolvidos – dentre eles, o Brasil. E qual seria o maior índice de um país subdesenvolvido? “A fome”, responde o curador.

“O primeiro eixo da exposição chama-se ‘Tem Gente com Fome’, que anuncia essa questão como central na discussão do subdesenvolvimento: é um tema que permeia toda a exposição”, indica dos Anjos, que, a propósito, levou em dezembro passado ao CCBB-BH a exposição “Hélio Oiticica – Delirium Ambulatorium”.

A fome é representada pela cor amarela, presente na iluminação, nas paredes e até nos bancos disponíveis para o público ao longo da exposição. Dos Anjos inspirou-se em um trecho do livro “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”, que também integra a exposição e no qual a autora, Carolina Maria de Jesus, interpreta a cor como um dos sinais da escassez alimentar. “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”, descreve o escritora. 

No quarto módulo da mostra, “A Estética da Fome”, nome inspirado no manifesto de Glauber Rocha, a temática volta, desta vez representada por filmes do próprio cineasta, por obras de Hélio Oiticica e por peças de teatro do grupo Opinião.

“No fim da década de 60, vem uma explosão do Tropicalismo e do Cinema Novo, em um movimento que tenta a ruptura com a ditadura militar. Em seu manifesto, Glauber Rocha aponta que, assumindo a violência da fome, pode-se chegar a algo realmente transformador”, comenta.

Obras de Abelardo da Hora aparecem em mais de um eixo na exposição. Foto: Fred Magno/O TEMPO

 

Por que “Arte Subdesenvolvida”?

O nome da exposição, “Arte Subdesenvolvida”, chega como uma provocação ao público. “A ideia não é diminuir as obras, pelo contrário”, adianta o curador da mostra, Moacir dos Anjos. “A exposição cobre um período em que o termo subdesenvolvimento se consolidou e formou muitas políticas sociais e econômicas, e a proposta é mostrar como os artistas reagiram a essa condição de país. Subdesenvolvimento significa um estado de pobreza, desigualdade e miséria, que não será superado simplesmente com o passar do tempo e com crescimento da economia”, indica o curador.

Esse conceito perdurou por 50 anos, até ser substituído por outras expressões mais amenas, como países emergentes ou em desenvolvimento. “Esses termos ficaram mais populares a partir dos anos 80 e dão a entender que iríamos superar os problemas aconteça o que acontecer. Mas nós sabemos que não é assim. Muitas das mazelas que existiam em décadas passadas continuam persistindo, como as desigualdades sociais, a falta de moradia, de saúde e de educação”, reflete dos Anjos. Além da fome, os cinco eixos da mostra, divididos cronologicamente, apresentam tópicos como a luta pelos direitos dos trabalhadores, a atuação de movimentos de cultura popular e o combate à ditadura militar.

Estética da Fome é um dos eixos de "Arte Subdesenvolvida". Foto: Fred Magno/O TEMPO

 

“Os artistas reagem ao conceito de país subdesenvolvido de maneiras diferentes, mas todos têm uma visão crítica do Brasil, enfatizando, por exemplo, as violências embutidas na fome e no racismo que afligem boa parte da população. As obras põem a nu as contradições que organizam o país. Para isso, quisemos apresentar tanto artistas de grande visibilidade quanto os menos conhecidos do público”, explica o curador. 

Obra contemporânea

Ao todo, a exposição reúne 130 obras de mais de 20 artistas, como Candido Portinari, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Cildo Meireles, Lygia Clark, Solano Trindade e Randolpho Lamonier. Este último, mineiro de Contagem, é o único artista contemporâneo convidado, de “modo a atualizar as discussões do passado para a atualidade”, conta dos Anjos. A obra de Lamonier, “Sonhos de Refrigerador – Aleluia Século 2000”, localizada no Pátio do CCBB-BH, apresenta uma série de peças que materializam os sonhos de consumo de pessoas da classe trabalhadora. 

“Eu perguntei para essas pessoas: ‘se você tivesse todo o dinheiro do mundo, qual seria o seu sonho de consumo?’. Para mim, é muito forte perceber que, com o passar do tempo, estamos nos tornando mais consumidores que cidadãos”, reflete Lamonier. As respostas foram traduzidas em cartazes, neons de LED, letreiros digitais e infláveis estendidos por todo o pátio. A ideia é que a obra cresça a cada CCBB em que for exposta – “Arte Subdesenvolvida” já passou por São Paulo e, na sequencia, seguirá para Brasília e Rio de Janeiro, respectivamente.

SERVIÇO
Exposição Arte Subdesenvolvida
Quando. De quarta-feira (28) a 18 de novembro de 2024, de quarta a segunda, das 10h às 22h
Onde. Pátio e galerias do 3º andar do CCBB-BH (praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. Gratuito, com ingressos disponíveis no ccbb.com.br/bh e na bilheteria do CCBB-BH