Quinquagésimo – e talvez o último – longa-metragem de Woody Allen, um dos maiores diretores vivos do cinema, “Golpe de Sorte em Paris” é um trabalho bem diferente do restante da filmografia do realizador, de 88 anos. E não é porque se trata de uma produção totalmente francesa, filmada em Paris e falada no idioma do país europeu.

Em cartaz a partir de hoje nas salas brasileiras, o filme é uma extensa “piada-reflexão” sobre um tema corriqueiro na obra de Allen: destino ou acaso. Diferentemente de longas anteriores, ele não estabelece, durante a trama, pequenas situações definidoras, que funcionam por si só e que, agregadas, ajudam a criar um crescente cômico-dramático.

É um bloco único, e não diversas peças independentes que vão se encaixando. A cena inicial, que mostra o encontro entre uma bela mulher, que trabalha com leilões de obras de arte e é casada com um rico empresário, e um escritor com quem estudou quando eram jovens, não leva a maiores desdobramentos nem antecipa algo que já não saibamos.

“Golpe de Sorte em Paris” não tem um narrador para nos conduzir e mostrar que algo diferente está acontecendo. Não há aquela figura, muitas vezes vivida pelo próprio Allen, para nos oferecer um ponto de vista, mesmo que seja contraditório. O diretor nos apresenta uma narrativa bastante linear e previsível – a não ser pelas últimas sequências.

Neste momento final, a piada-reflexão se fecha da maneira mais inusitada possível, bem ao estilo do Allen que conhecemos. Toda aquela estrutura dramática se dissolve com uma única reviravolta que nos faz tender para algo providencial, com muitos elementos ocorrendo simultaneamente para que se possa concretizar o inesperado. 

Os personagens têm que estar no mesmo lugar e horário, além de que algo realmente novo deve aparecer, para movimentar as peças em direção ao absurdo. A princípio, por saltar tanto aos nossos olhos, não parece fazer muito sentido. Mas, se pensarmos no que está por trás da construção dos protagonistas, talvez tenhamos uma compreensão.

O quarteto principal (o casal, o amigo de escola e a mãe da mulher) é apresentado, da forma mais crua possível, como a “esposa-troféu”, o marido controlador, o amigo sedutor e a mãe que adora ler romances policiais. Não há nada muito além disso, de uma clara e batida história de traição. Há, porém, algo que os enlaça: o envolvimento com a arte.

O diretor nos leva a esse universo em que a arte é predominante de maneira muito romântica e idealista. O conhecimento de literatura (mesmo que seja as de caráter pulp) faz toda a diferença para, de um lado, dar certo charme à vida, e, do outro, enxergar as armadilhas vindas de quem aprendeu a lidar com tudo de um jeito metódico e calculado. 

Allen poderia ter construído um vilão recheado de ingredientes sedutores. Da mesma forma, o casal poderia ter a química dos grandes amantes. Mas o realizador parece olhar tudo de cima – e não ao lado, com coadjuvantes fazendo esse papel de observadores – para, enfim, dizer com divertimento que não devemos levar tudo tão a sério.

No manuscrito de um futuro livro encontrado por acidente numa gaveta do apartamento do amante, a esposa infiel lê o que é a frase-epíteto de “Golpe de Sorte em Paris”, em torno do que pode ser definido como destino ou acaso. Não há nada conclusivo, na verdade, mas não é esse mesmo o papel da arte?