Foi a morte de Roberto Santos que fez Anna Muylaert virar a chave e se transformar numa das mais importantes cineastas do país. Grande homenageada da Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (CineBH), com início hoje em nove espaços da capital mineira, a realizadora de filmes como “Durval Discos” e “Que Horas Ela Volta?” atuava como crítica de cinema quando soube, em maio de 1987, da morte de Santos – um enfarte fulminante na sala de desembarque do aeroporto de Guarulhos, ao retornar do Festival de Gramado.

Anna era crítica de cinema do jornal “O Estado de S. Paulo” e havia feito a cobertura do festival gaúcho. “O meu editor na época não me pediu para ver o filme do Roberto, ‘Quincas Borba’. Já o Amir Labaki, da ‘Folha’, escreveu uma crítica negativa. Reputaram a morte dele a um desgosto por ter sido desprestigiado ou por não ter ganhado prêmio, não me lembro direito. Quando eu soube disso, meu mundo caiu e resolvi não fazer mais críticas. Eu queria fazer cinema, e não dá para jogar dos dois lados”, recorda Anna, sobre um tema pouco abordado por ela.

“Quando eu saí da faculdade, era o tempo do Collor, e o cinema parou. Fiquei meio perdida em relação ao que eu iria fazer, e a crítica apareceu como uma oportunidade. A ‘Folha’ abriu um concurso em que você tinha que mandar três críticas em papel, em máquina de datilografia. Eu escrevi e lembro que uma das críticas era sobre o (curta-metragem) ‘O Quarto 666”, de Wim Wenders. Mandei, mas não passei”, lembra. Para a sorte dela, algumas cópias ficaram no carro quando ela foi visitar o produtor e diretor Francisco Ramalho.

“Lá estava o Humberto Martins, da revista ‘Isto É’. Ele falou que estavam atrás de críticos e me perguntou se eu conhecia alguém. Respondi que tinha três textos, fui ao carro e passei para ele. Eu fazia textos muito pequenos, de três parágrafos. Aí o pessoal do ‘Estadão’ me chamou, e também fiquei um ano lá. Tinha mais espaço, mas acabei saindo”, salienta. O fim do exercício crítico coincidiu com o período de Retomada, com o lançamento de editais de cinema. A passagem pelo “outro lado”, porém, impactou a sua carreira como cineasta.

“Eu adorava, ia em cabine, conhecia os críticos... Tinha o Rubens Ewald (Filho) na época. Era muito engraçado, porque ele ficava falando alto o que achava no meio do filme”, registra. Mas foi durante o Festival de Veneza, na Itália, que definiu qual tipo de cinema iria ver – e, depois, fazer. “Lá tinha sessão a partir das 10h, e comecei a ver filme o dia inteiro. Chegou um momento em que não queria perder tempo com filme ruim e tomei um partido de que os bons filmes eram aqueles em que a câmera era a caneta. Eles tinham que trazer alguma coisa a partir do ponto de vista da câmera, do olhar. Não era a história que importava, mas sim o modo de olhar”, assinala.

Medo de fazer um filme desastroso

Filme mais premiado de Anna Muylaert, “Que Horas Ela Volta?” – lançado em 2015 e presente numa mostra especial dedicada à diretora paulistana dentro da CineBH – era para ser o primeiro longa-metragem de sua carreira, antes de “Durval Discos” e “É Proibido Fumar”. Hoje ela considera que foi uma sorte dupla tê-lo produzido quase duas décadas depois.

“Se fosse antes talvez não teria o mesmo impacto. Ele veio num momento histórico da sociedade. Principalmente para as Jéssicas (nome de uma das personagens), as primeiras estudantes que foram para a universidade a partir de políticas públicas e que sofriam preconceito e dificuldades com as mudanças no tecido social”, destaca. 

“Quando elas viram o filme, se identificaram como geração. É uma das forças dele, além de trazer várias hipocrisias à luz. Ele levantou o tapete e jogou uma luz num momento em que isso estava muito inflamado. Fazia pouco tempo da PEC das Empregadas, que foi um passo de libertação escravagista. O filme causou muita discussão e ainda causa”, analisa.

A primeira escrita do roteiro, lembra, foi impulsionada pela figura da babá, “a mais importante da sociedade, trazendo todas as contradições”. Mas o resultado foi algo “meio Gabriel García Márquez, mais doido que o ‘Durval’”. Anna logo percebeu que o tema era importante, mas não carregava ainda a maturidade para elaborá-lo.

“Tinha muito medo de fazer um filme desastroso e depois não conseguir fazer mais. Talvez tenha sido muito feminina neste sentido, de querer começar por uma coisa menos ambiciosa, ir aprendendo até ter coragem para falar. Acho que estava certa, porque, realmente, o ‘Que Horas’ era um filme mais maduro, mais simples”, pondera.

Programação

A abertura da Mostra CineBH, hoje, às 20h, no Cine Theatro Brasil, terá a exibição do mais recente longa de Anna Muylaert, “O Clube de Mulheres de Negócios”, ainda inédito no circuito 
comercial. Até domingo serão apresentados, em nove espaços diferentes, mais de cem filmes nacionais e estrangeiros, divididos em 12 mostras temáticas. Com entrada gratuita, a mostra 
contará com oficinas, workshops, laboratórios, masterclass, ciclo de debates, painéis e lançamento de livros. Confira a programação completa em www.cinebh.com.br.