Um dos grandes méritos do filme “O Auto da Compadecida 2”, em cartaz nos cinemas brasileiros e sucesso de bilheteria, é levar para as telonas, uma vez mais, a graça e a leveza da amizade entre João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). Os dois roubam a cena toda vez que aparecem juntos, provocando ora o riso, ora a emoção em quem assiste à nova versão inspirada no clássico de Ariano Suassuna.

Embala essa relação “Canção da América”, música de Milton Nascimento e Fernando Brant, escrita em 1979. A escolha não poderia ter sido mais acertada. “Não existe outra música que melhor retrata esta amizade. Até cheguei a pensar em outras canções, mas nenhuma delas faria tanto sentido quanto ‘Canção da América’”, sustenta o compositor João Falcão, que assina a trilha sonora do filme ao lado do músico Ricco Viana.

Mas, em vez de Bituca, de 82 anos, cuja voz eternizou o hino da amizade, no longa-metragem, “Canção da América” é interpretada por João Gomes. Aos 22 anos, o pernambucano é um dos maiores expoentes do forró e do piseiro, tendo sido indicado ao Grammy Latino em 2023, com o álbum “Raiz”, e o mais ouvido no Spotify em 2021, na categoria álbum. A ideia de chamá-lo, segundo Falcão, foi fazer algo “popular, e, ao mesmo tempo, contemporâneo.”

“O João Gomes é um grande nome do piseiro. Escolher essa música foi um impulso natural e muito feliz”, salienta Falcão. “João Gomes é uma figura que pensamos antes da própria música. Seu timbre peculiar e sua força nordestina nos deu a certeza que agregaria muito a ideia da conexão com um grande público e traria uma carga emocional incrível para amizade de João Grilo e Chicó”, completa Ricco Viana.

Filha de Fernando Brant e sócia da editora Três Pontas, que administra os direitos autorais das músicas do músico do Clube da Esquina, Isabel Brant também ficou satisfeita com a versão do pernambucano. “Casou perfeitamente com o filme. O arranjo e o canto dele se misturaram com a narrativa de uma maneira muito orgânica e ajudaram a contar essa história. Acho que foi uma escolha muito acertada de quem fez a trilha do longa”, afirma.

“Somos entusiastas de novas gravações porque elas ajudam a levar a música cada vez mais longe. E uma música como ‘Canção da América’, que fala sobre encontro e amizade, algo tão comum a todos nós, tem a capacidade de emocionar sempre. E claro, cantada pelo João Gomes, um artista tão jovem e popular, vai poder chegar a pessoas que talvez não a conhecessem de outra maneira”, ressalta Isabel.

O movimento de João Gomes não é novo na música brasileira. Assim como o cantor, são muitos os artistas “das massas” que incluem clássicas do cancioneiro tupiniquim em seu repertório. São exemplos o pagodeiro Xande Pilares que gravou um disco inteiro com músicas de Caetano Veloso; Belo, também do pagode, intérprete de “Um dia, Um Adeus”, de Guilherme Arantes; Anitta, do funk, que usou o sample de “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius, para gravar “Girl From Rio”; a sertaneja Lauana Prado, que deu nova voz a “Escrito nas Estrelas”, de Tetê Espíndola…

“Acredito que toda regravação é um renascimento da canção. Cada artista acrescenta sua marca, sua interpretação. ‘Canção da América’ emociona por falar, de uma maneira muito simples, de um sentimento que é comum a todas as pessoas. Cantada por alguém que atinge o povo de uma maneira tão forte, tenho certeza que ela vai chegar ainda mais longe”, celebra Isabel Brant.

Crítico musical, o escritor Jotabê Medeiros analisa que esse tipo de intercâmbio é saudável quando não é “oportunista.” “João Gomes tem autoridade na voz, o que faz com que a releitura seja muito interessante. O problema é quando há regravações que soam como uma ‘carona’. Ou seja, quando um artista de um universo muito específico de fãs faz uma gravação só para surfar na crista de uma onda”, pondera.

Um exemplo disso é “Juntos”, reinterpretação de Paula Fernandes e Luan Santana para “Shallow”, música-tema de “Nasce Uma Estrela”, protagonizado e cantado por Bradley Cooper e Lady Gaga. “Aquilo foi um desastre. Pareceu muito uma ação de marketing pensada apenas para criar milhões de cliques e audições”, analisa.

Jotabê Medeiros, que já escreveu para “Folha de S.Paulo”, “O Estado de S.Paulo”, “Veja SP” e “CartaCapital”, entende que, quando um artista mais popularesco canta músicas consagradas da MPB, eles atuam não só para mantê-las vivas, como também para “furar a bolha do algoritmo.”

“Quando você é jovem, geralmente tem obsessões musicais. Então, se é fã de Led Zeppelin, por exemplo, o algoritmo vai te apresentar todas as variações possíveis das músicas da banda, além de oferecer apenas outros artistas que transitem neste universo. Assim, se cria um ‘gado confinado.’ Mas quando um artista como João Gomes canta uma canção consagrada, ele consegue romper com a ditadura dos algoritmos, levando essas canções para um público que talvez não a escutaria em outro lugar”, comenta.

Essa análise se traduz na prática. “Quando um artista com muito sucesso regrava uma canção, a busca pelo autor da música aumenta consideravelmente nas plataformas. O Milton é um magnífico revolucionário da música brasileira, mas nunca foi um magnífico vendedor de discos. Especialmente no mundo contemporâneo, em que o disco material desapareceu, é muito importante existir outras formas de apresentar tais artistas para as novas gerações”, aponta.

Roberto Carlos foi pioneiro em se aproximar do popular

Da mesma forma em há cantores das “massas” que interpretam músicas aclamadas, são muitos os artistas consagrados que se aproximam do repertório mais popularesco.

Entram nessa lista Caetano Veloso, que já gravou o gospel “Deus Cuida de Mim”, de Kleber Lucas, e o funk “Se Ela Dança, Eu Danço”, de MC Leozinho; Maria Bethânia, que interpretou “É o Amor”, dos sertanejos Zezé Di Camargo & Luciano; Rubel cantando “Medo Bobo”, de Marília Mendonça; Adriana Calcanhotto que fez sua versão de “Fico Assim Sem Você”, de Claudinho & Buchecha, entre outros.

“Acredito muito na soma das forças. O mútuo respeito às diferentes jornadas e culturas. Um lado potencializa o outro. É lindo ver Caetano e Bethânia cantando Iza, assim como João Gomes cantando Milton”, pontua Ricco Viana. 

Crítico musical, o jornalista e escritor Jotabê Medeiros explica que esta tradição é antiga e que Roberto Carlos foi um dos pioneiros deste movimento. “Ele foi o artista que mais soube se aproximar de distintos universos da música brasileira sem parecer que estava fazendo vampirismo. Roberto Carlos gravou funk melody quando o estilo ainda não era consagrado, interpretou cantoras do romantismo popular e foi o primeiro a cantar Tim Maia. Basta vez no fim de ano da Globo, em que sempre canta músicas muito diferentes de seu repertório”, assinala. 

Essas atitudes são corajosas, avalia Medeiros. “‘É o Amor’ era uma música execrada por uma formação mais, teoricamente, refinada. Mas quando Maria Bethânia faz a regravação, ela forçou os limites de classe e enfrentou preconceitos de pessoas que acreditavam ser uma música menor. Da mesma forma fez Nara Leão ao gravar Roberto e Erasmo Carlos. São posturas que mostram o alto grau de politização dentro da escolha do repertório dessas artistas”, ressalta.