O maior oponente de Eunice Paiva no Globo de Ouro também leva as iniciais E.P. É Emilia Perez, um ex-mafioso que resolve fazer a sonhada transição de sexo. A luta desta transexual não é contra militares e governantes que nunca assumem o assassinato do companheiro de vida, mote central de “Ainda Estou Aqui” – filme de Walter Salles responsável por colocar o Brasil no páreo da premiação, que acontecerá na noite deste domingo.
Vivida pela atriz trans espanhola Karla Sofia Gascó, Emilia caminha no sentido contrário de Eunice Paiva: ela quer passar uma borracha no passado criminal e masculino no filme de Jacques Audiard. Já a mulher que protagoniza “Ainda Estou Aqui”, interpretada por Fernanda Torres, faz de tudo para que a verdade dos acontecimentos venha à tona. Uma luta que leva 25 anos, entre 1971 e 1996, para o reconhecimento oficial.
A história real de Eunice, contada no livro homônimo escrito pelo filho Marcelo Rubens Paiva, é um dos grandes sucessos recentes de crítica e público da cinematografia brasileira. Após ganhar o prêmio de roteiro no Festival de Veneza, no ano passado, o filme cimentou uma carreira que poderá ter seu ápice no Oscar – “Ainda Estou Aqui” está entre os 15 filmes pré-selecionados que disputam cinco vagas na categoria de produção estrangeira.
A última vez que o Brasil ganhou o Globo de Ouro foi justamente com um longa de Salles. Em 1999, ele concorreu com “Central do Brasil”. Outra coincidência é o fato de a participação no Globo de Ouro ser em dose dupla, acompanhada de uma nomeação a melhor atriz. E não deixa de ser curioso que, após Fernanda Montenegro, agora é vez de sua filha Fernanda Torres, que tentará levar o troféu que, há 26 anos, foi para Cate Blanchett.
Como no Globo de Ouro a categoria de melhor atriz é dividida entre drama e comédia/musical, não há um embate com “Emilia Perez”. Enquanto Fernanda Torres tem rivais com Oscar na bagagem, entre elas Angelina Jolie, Nicole Kidman e Kate Winslet, Karla Sofia terá como oponentes Amy Adams, Demi Moore e Zendaya. O páreo parece ser mais fácil para a espanhola, apesar de a interpretação de Demi também chamar a atenção.
Demi encarna uma história sempre suscetível a prêmios, como uma estrela de outros tempos (chegou a ser a atriz mais bem paga na década de 90, em filmes como “Ghost – Do Outro Lado da Vida” e “Assédio Sexual”) que caiu no ostracismo e agora dá a volta por cima num papel desafiante em "A Substância". O filme aborda um tema muito sensível, envolvendo a questão do etarismo e dos padrões de beleza.
Karla Sofia é a favorita, devendo se tornar a primeira mulher trans a levar a estatueta, na parte dedicada ao cinema – o Globo de Ouro também premia a produção televisiva e já entregou uma estatueta, em 2022, a Michaela Jaé Rodriguez ganhou como melhor atriz em série de drama por sua performance na terceira temporada de “Pose”. Karla também chega com a vantagem de ter vencido no Festival de Cannes, ao lado de suas colegas de elenco.
E, evidentemente, há o peso do favoritismo da obra de Audiard, que recebeu o maior número de indicações (dez, incluindo melhor filme e direção). É também o principal concorrente de “Ainda Estou Aqui” em produção estrangeira - apesar de ser falado em espanhol, o país de origem é a França. Disputar nas duas categorias (filme e produção estrangeira) não é novidade, caminho trilhado no ano passado por “Zona de Interesse”, “Anatomia de uma Queda” e “Vidas Passadas”.
Mas é bom não se descuidar com o iraniano “A Semente do Fruto Sagrado”, de Mohammad Rasoulof, que representa a Alemanha e vem cacifado pelo Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes e a eleição como melhor filme estrangeiro pelo National Board of Review (promovido pelos críticos americanos). O italiano “Vermiglio”, de Maura Delpero, também aparece com destaque, após receber o principal prêmio do Festival de Veneza.
SE LIGA.
A cerimônia de entrega dos troféus da 82ª edição do Globo de Ouro acontece neste domingo, em Los Angeles, com transmissão ao vivo na TNT (TV paga) e na Max (plataforma de streaming), a partir das 22h. Nikki Glaser é a mestre de cerimônias
Salles tem quarto filme indicado no prêmio
Além dos dois filmes de Walter Salles (“Central do Brasil” e “Ainda Estou Aqui”), o Brasil já figurou entre os indicados ao Globo de Ouro em outras oportunidades. Sonia Braga abriu o caminho para atores brasileiros. Tia de Alice Braga, ela foi indicada como melhor atriz coadjuvante por “O Beijo da Mulher-Aranha” (1986) e “Luar sobre Parador” (1989) e melhor atriz em filme para TV ou minissérie, por “Amazônia em Chamas” (1995).
Na parte masculina, Daniel Benzali, ator nascido no Rio de Janeiro que construiu sua carreira no exterior, foi indicado em 1996, pela série “Murder One”. Wagner Moura recebeu a nomeação em 2016 por sua interpretação como o traficante colombiano Pablo Escolar, pela série “Narcos”, produzida por José Padilha (diretor de “Tropa de Elite”) para a Netflix. Ele perdeu para Jon Hamm, de “Mad Men”.
Como melhor produção estrangeira, o primeiro a ser indicado foi “Orfeu do Carnaval”, longa de Marcel Camus feito junto com a França e lançado em 1960. Venceu. Depois o Brasil bateu na trave em duas oportunidades: em 1979, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, derrotado pelo sueco “Sonata de Outono”; e em 1982, “Pixote: A Lei do Mais Fraco”, de Hector Babenco, que perdeu para o britânico “Carruagens de Fogo”.
Após ganhar com “Central do Brasil”, Walter Salles foi lembrado duas vezes na primeira década do novo milênio, mostrando ser o cineasta brasileiro de maior entrada internacional. Em 2002, com “Abril Despedaçado”, viu o troféu ir para “Terra de Ninguém”, da Bósnia e Herzegovina. Em 2005, com “Diários de Motocicleta”, não conseguiu tirar o favoritismo do espanhol “Mar Adentro”.
Entre as duas indicações de Salles, “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, chegou com força em 2003, mesmo ano em que foi indicado a quatro categorias do Oscar, mas não superou “Fale com Ela”, do espanhol Pedro Almodóvar. Em outras categorias, vale ressaltar também o prêmio de trilha sonora para Tom Jobim, por “Orfeu do Carnaval”