Com estreia oficial nesta quinta-feira (6), embora esteja em cartaz desde a semana passada, o longa “Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, chegou aos cinemas brasileiros com a imagem desgastada, mas ainda despertando a curiosidade do público em um momento em que, a um só tempo, tem suas qualidades questionadas e reconhecidas, é enxovalhado e premiado. Nas últimas semanas, fala-se tanto sobre o filme que a impressão que fica é de que os espectadores já formaram suas opiniões antes mesmo das primeiras exibições no circuito comercial de cinema do país.

Mas, claro, é sempre prudente e aconselhável se ater a obra pelo que ela propõe antes de se fiar às críticas que ela desperta. Neste caso, estamos falando de um filme que se debruça sobre a história de Emilia Pérez, uma mulher trans, que, vivida pela atriz Karla Sofía Gascón, diz sempre ter se entendido no feminino, apesar de só realizar a transição de gênero depois de adulta. Até então, ela viveu como sua “sombra”, Manitas del Monte, um violento chefe de um cartel de drogas mexicano, casado com Jessi, personagem de Selena Gomez, e pai de dois meninos.

Quem ajuda Emilia a “matar” Manitas é a advogada Rita, defendida por Zoe Saldaña, que aceita o papel de intermediar as negociações com um cirurgião. Em troca, há a promessa de ficar rica. Os planos das duas são bem-sucedidos e, ricas, elas reconstroem suas vidas na Europa, sem manter contato uma com a outra. E a transformação de ambas impressiona: a primeira vai de uma postura opressiva e pesada a uma atitude lânguida, com a mesma leveza de seu robe de seda esvoaçante; e a última deixa os ares de alguém à beira de um burnout para ganhar um glow up de quem já não tem tanto com o que se preocupar. 

Em um jantar, porém, elas se reencontram. A partir de então, Rita volta a auxiliar Emilia, desta vez em busca de se reconectar com seus filhos. Em meio ao retorno ao México, à reconexão com a família, já não como pai daquela família, a ex-narcotraficante, em uma tentativa de remissão pelos crimes do passado, constitui e lidera uma organização que tenta encontrar e dar destino aos corpos das vítimas dos cartéis de drogas que operam no país. Há ainda espaço para conflitos familiares, disputas, vinganças.

O enredo singular é emoldurado com inventividade, a partir da mistura de elementos de diferentes gêneros do cinema, resultando em uma espécie de novela-musical, uma ópera-trap que orbita o universo gângster. E essa combinação funciona bem, traz frescor ao gênero e é um dos pontos fortes do filme, inclusive pelo uso criativo das transições.

Falada em espanhol, com algumas músicas em inglês, protagonizada por uma mulher trans e com uma trama novelesca, a controversa obra tem um quê de almodovariana, ecoando também “Hedwig - Rock, Amor e Traição” – filme de 2001, escrito, dirigido e estrelado por John Cameron Mitchell, apontado como uma espécie de grandmother das comédias musicais queer. No lugar das guitarras, temos os armamentos bélicos dos cartéis de drogas – já as controvérsias na forma como temáticas sensíveis foram tratadas então permanecem na produção de agora.

Um México algo distante

Seria leviano, a essa altura, escrever sobre “Emilia Pérez” sem considerar as críticas que vêm se avolumando, sobretudo após o Globo de Ouro e as 13 indicações ao Oscar. Muitas delas, diferente do que o diretor já sugeriu em entrevistas, não são meros ruídos das redes sociais – embora outras tantas não passem disso, caso dos cortes trechos musicais que, carecendo de contexto, tentam diminuir a produção a algo de tosco, sem se dar conta do ridículo que é a própria gincana depreciativa operada nessas mídias, em uma lógica que tenta tomar o todo de uma obra pelo fragmento de uma sequência.

Entre as queixas mais certeiras e vocais, vindas sobretudo da audiência mexicana, está a percepção de que o filme empresta certa leveza a um tema sensível para o país: o trauma dos mortos e desaparecidos, vítimas principalmente do narcotráfico. Essa crítica aparee em uma publicação do roteirista mexicano Héctor Guillén, que escreveu: “Quase 500 mil mortos e a França decide fazer um musical”.

Entretanto, esse reclamado expediente de recorrer a alguma dose de humor para elaborar traumas históricos não é estranho à história do cinema: um dos exemplos mais simbólicos talvez seja o longa italiano “A Vida É Bela”, que levou três estatuetas no Oscar de 1999 e, cuja narrativa, empresta algo de lúdico à abominável violência dos campos de concentração nazistas, um dos principais instrumentos do Holocausto judeu.

Selena Gomez, Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón, trio de protagonistas do longa 'Emilia Pérez' | Distribuição/Paris Filmes
Selena Gomez, Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón, trio de protagonistas do longa 'Emilia Pérez' | Distribuição/Paris Filmes

A comunidade mexicana também se entrincheirou para denunciar representações estereotipadas, a exemplo da primeira sequência musical, em que, enquanto a cena se desdobra, ao fundo, um grupo assiste a uma partida de futebol e comemora um gol.

Além disso, provocou barulho a pouca representatividade do país na obra, seja da perspectiva das locações – a maioria das filmagens foi feita em estúdios perto de Paris –, seja do ponto de vista do elenco – apenas uma das quatro atrizes principais, Adriana Paz, é mexicana, enquanto Zoe Saldaña e Selena Gomez são norte-americanas, a primeira de ascendência dominicana e a última de origem mexicana; e a protagonista Karla Sofía Gascón, primeira mulher trans a concorrer a um prêmio de atuação no Oscar, é espanhola, de um subúrbio de Madri, embora já tenha trabalhado na TV mexicana e vivido no país.

Sem um plantel nativo, a produção precisou encontrar subterfúgios para driblar o problema da ausência de um sotaque mexicano na interpretação da maioria das personagens. A advogada Rita, personagem de Zoe Saldaña, por exemplo, passou a refletir a ascendência dominicana da atriz, em vez de mexicana. Já Jessi, de Selena Gomez, foi reformulada, deixando de ser uma mexicana nativa para ser representada como uma mexicano-americana.

Mas, se foi possível justificar a pronúncia excessivamente americanizada do espanhol, a sensação é que outros excessos permaneceram. Atriz mais famosa do elenco – e talvez justamente por isso –, a ex-estrela da Disney protagoniza cenas que pouco acrescentam à história: em uma delas, aparece dançando com um namorado narco-traficante quando é flagrada por Rita, um flagrante que não tem nenhum desdobramento e parece sobrar no filme.

Uma reducionista representação de gênero

Outro aspecto de “Emilia Pérez” que tem atraído críticas – como as manifestadas pelo filósofo e escritor transgênero Paul B. Preciado – é a representação do masculino como correlato ao que é opressivo e, do feminino, como o que é benevolente, claro, é sim questionável, mas, ao mesmo tempo, não está dissociado de um longo paradigma da forma como esses conceitos são representados.

Para ficar em um exemplo do campo das artes visuais, há o quadro “L'Origine du monde” (“A origem do mundo”), do pintor realista Gustave Courbet, de 1866, respondido, 81 anos depois, por “L'origine de la guerre” (“A origem da guerra”), tela da artista visual e performer Orlan. No primeiro, há o retrato de um ventre e da vulva de uma pessoa, em uma posição que remete à ideia de passividade, mesmo recorte do segundo, com uma diferença: em vez da vulva, o falo.

As duas obras, ambas feitas por artistas franceses, já causaram extensas discussões a seu tempo e parecem atualizadas no filme do igualmente francês Jacques Audiard, que também recorre à mesma premissa: Manitas, o narcotraficante, aparece como uma representação do masculino opressivo, atrelado, na obra, ao pênis; já Emilia, a benfeitora, representa o feminino benevolente, atrelado, por sua vez, à vagina.

Karla Sofía Gascón em cartaz do filme 'Emilia Pérez' | Distribuição/Paris Filmes
Karla Sofía Gascón em cartaz do filme 'Emilia Pérez' | Distribuição/Paris Filmes

A questão é que, passados quase 80 anos desde a tela de Orlan propôs um contraponto ao quadro de Courbet, essa ambivalência soa como um reducionismo frente ao estado atual das discussões em torno das teorias de gênero, quando masculino e feminino são encarados como conceitos que extrapolam aspectos biológicos ou mesmo uma ideia de representarem papéis sociais, sendo entendidos como posições subjetivas formadas a partir de processos psíquicos, culturais e simbólicos. Trocando em miúdos: “Emilia Pérez” falha ao se apegar à ideia da genitália como um marcador definitivo de masculinidade e feminilidade.

Essa perspectiva reducionista se reflete ainda na maneira como a obra se fixa à ideia de que a transição de gênero só se completa após um procedimento médico de redesignação genital – a famigerada “vaginoplastia” que embala uma das músicas apresentadas na trama, um destaque que só reforça como a questão ocupa um lugar central para a transformação da personagem. Vale lembrar, esse problema de representação persiste há um bom tempo no tratamento que diretores celebrados emprestam à temática da transição de gênero, aparecendo, por exemplo, em “Laurence Anyways”, do canadense Xavier Dolan, de 2012.

Por fim, depondo contra a sempre ressaltada inventividade da obra, há um desfecho que repete um padrão conhecido nas produções de cinema: o fim trágico de personagens cujas experiências são divergentes de sexo e gênero. Nas palavras de Paul B. Preciado, em parte, o sucesso do filme provém desta característica das produções normativas, que possibilitam que o espectador sinta empatia por uma personagem trans e obtenha prazer de seu corpo e de sua experiência, “desde que o ritual cinematográfico termine com o sacrifício da pessoa trans”.