A primeira vez que a música apareceu na vida da cantora, compositora e poeta Coral foi aos 9 anos, como um recurso terapêutico frente às crises de ansiedade que manifestava – sem entender, naquele momento, que os episódios eram, na verdade, um sintoma de disforia de gênero. “Minha mãe me colocou em uma aula de violão e eu fiquei um mês. Não consegui ficar mais que isso. Mas continuei tocando em casa”, recorda a baiana, nascida em Jequié, no interior e ao sudoeste do Estado.
Quase duas décadas e meia depois, fazer música ganhou outros significados para a artista, sem nunca ter deixado de significar um meio de cura. “No início, ocupava um papel quase de salvadora e, depois, foi me dando asas, tanto no sentido de me fazer sentir mais livre quanto por me levar para muitos lugares, sempre tendo na própria músico um lugar de pertencimento. Mais tarde, fui entender que a música também era uma linguagem, uma maneira de expressar minhas vivências, minha maneira de ver o mundo”, descreve Coral, que é precisa ao comparar a música a um belo par de asas, com as quais se prepara para o próximo vôo alto: o lançamento, na próxima semana, de uma música sua gravada em parceria com a também baiana Daniela Mercury.
“No final do ano passado, mandei uma música minha para o Elo Feat dos Sonhos e fui premiada, selecionada para cantar com a Daniela. E a gente gravou ‘Eu Sou Baiana’, uma canção minha, que é uma das que mais gosto”, detalha a cantora, acrescentando que, por meio do projeto, conheceu também outras figuras da cena musical, como Maria Gadú, Pretinho da Serrinha e Márcio Victor, que assinam a produção.
Radicada em Belo Horizonte desde 2019, Coral vê no lançamento um reencontro com o público baiano. “Acho que a Bahia vai me conhecer agora, porque eu vim para Minas e foi aqui que apresentei primeiro esse meu trabalho autoral. Então, sinto que estou sendo apresentada ao meu Estado de nascimento por ninguém menos que a Daniela Mercury. Estou chancelada né?”, exalta. Está, sim, sem dúvida. O que só reforça como é chegada a hora dar mais um passo importante em sua trajetória artística: o lançamento do seu primeiro álbum.
“Vai ser o meu TCC”, brinca. “Nesses cinco anos de carreira como compositora, inserida na indústria da música, lancei alguns feats, singles e três EPs, o mais recente com as músicas da trilha sonora do filme ‘Tudo O Que Você Podia Ser’ (2024, do mineiro Ricardo Alves Jr.). Mas não havia lançado nenhum álbum, que, agora, estou preparando para ser uma entrega coesa e bonita, que marque esse momento da minha carreira”, estabelece.
Conexão Jequié-BH
Como intérprete, Coral tem uma carreira de quase 20 anos. “Comecei aos 15 anos, me apresentando em botecos no interior da Bahia. Às vezes, ia para o litoral fazer shows em casamentos e aniversários, sempre com um repertório de música popular brasileira”, cita, mencionando que, nesse ínterim, começou quatro faculdades, passando pelos cursos de Direito, Serviço Social, Administração e Arquitetura, que quase terminou. Mas a música não deixou, embora, dada altura, ela quase tenha titubeado.
“Teve um momento que fiquei meio cansada, porque trabalhava arduamente, de terça a domingo, e não tinha um retorno financeiro. Eu sentia que precisava fazer mais dinheiro. Então, decidi desistir de cantar. Consegui um trampo em Londres, para trabalhar em uma galeria de arte, e fui para Ouro Preto para fazer aquele que seria meu último show, no casamento de uma fã, que já me acompanhava nas redes sociais”, situa.
Logo, o acaso tratou de mudar seus planos e recalcular suas rotas. “Quando já estava em Minas, conheci um produtor musical, o Thiago Braga, que conheceu meu trabalho e me convidou para gravar um disco. Eu decidi ficar e acabei dizendo ‘sim’ para a música de novo”, aponta.
Pandêmica
Essa virada de chave, essa segunda chance à carreira artística, aconteceu em 2019. Ninguém imaginava o tamanho dos desafios que estavam à espreita com a chegada da pandemia da Covid-19, maior emergência sanitária global desde a Gripe Espanhola.
À época, Coral já vivia em BH, acolhida por uma amiga. Com a crise, porém, o projeto do disco foi paralisado e ela se viu presa à cidade. “Eu simplesmente não podia sair”, rememora. “Nisso, entendi que precisava fazer alguma coisa para ganhar algum dinheiro e comecei a fazer lives. Rapidamente, chegaram convites para participar de festivais online. E, com isso, passei a sentir a necessidade de lançar minhas canções autorais”, resume, se descrevendo como uma artista pandêmica: “Eu lancei minha carreira no meio desse período”. A primeira música de sua lavra a vir a público foi “Cigana”, de 2020.
Alçar vôo quando os ares são de turbulência, claro, é arriscado, mesmo para quem tem asas. Um risco que valeu a pena. Quando a pandemia arrefeceu, Coral já tinha construído uma teia de relações com a cena musical belo-horizontina. “Eu conhecia, de longe, inicialmente, muitos músicos e artistas da cidade. Recebia convites para eventos e, com isso, fui me tornando uma ‘baianeira’”, admite.
Outras parcerias
Para alguém cuja carreira como compositora tem apenas cinco anos, Coral surpreende, colecionando parcerias de peso. Aliás, mais que de peso, parcerias que alicerçam. A primeira delas, de 2023, foi com o paraibano Chico César.
“Conheci ele na abertura do Festival de Jazz de Trancoso. Eu nem ia me apresentar na abertura, porque estaria no palco principal no dia seguinte, mas uma amiga insistiu e eu cantei duas músicas à capela. Quando terminei, a Elba Ramalho veio falar comigo e me levou até o Chico. Eu fiquei tremendo, porque ele, para mim, é uma referência muito grande, um artista muito coerente, que admiro desde criança”, recorda. O ídolo que encontrou, porém, logo afastou qualquer distanciamento e se portou como um amigo.
“Ele disse que tinha se visto muito em mim. E eu respondi que tinha muita vontade de um dia gravar alguma coisa com ele, que, na réplica, garantiu que aquilo naturalmente iria acontecer”, narra. Sete meses depois, Coral escreveu a música “Ressonância”, dedicada ao pai, que havia sofrido um acidente de trabalho e cujo processo de recuperação a artista, vivendo em BH, acompanhou de longe. “Depois ele ficou bem e, quando retomei essa canção, vi que ela tinha muito a cara do Chico. Estimulada pela minha empresária, mandei mensagem para ele, que prontamente me respondeu”, cita. Três meses depois, ela aterrissava em São Paulo para gravar a composição.
Já ano passado, mais uma vez muito bem acompanhada, Coral lançou a música “Serra” ao lado da mineira Fernanda Takai.
“O Thiago Braga, que havia me convidado para gravar aquele disco, em 2019, foi baixista do Patu Fu e produziu o disco ‘Música de Brinquedo’. Então eu sabia que, eventualmente, ia acabar encontrando o pessoal da banda. E isso aconteceu mesmo, em uma pizzaria, quando eu convidei a Fernanda para um show que eu ia fazer no Sesiminas. Ela não só apareceu lá como tuitou que aquele show merecia ir para o Brasil inteiro. E eu respondi falando que queria gravar uma música com ela. A conversa avançou, eu mandei umas cinco músicas minhas, ela escolheu uma e a gente gravou”, menciona, tecendo elogios à artista mineira: “Ela é uma doçura, acho que a pessoa mais doce que já conheci na minha vida”.
Outro encontro que marcou a história de Coral foi com a carioca Leci Brandão. As duas se apresentaram juntas a convite de um festival belo-horizontino, em 2023. “Aconteceu uma coincidência muito grande, porque, antes de cantar com ela, eu estava próxima da Sandra de Sá. Já tinha dois anos que a gente estava confabulando coisas juntas. Daí, comentei com ela que eu ia cantar com a Leci. E a Sandra me disse que a Leci foi a cantora que lançou ela, na década de 80. Então, de repente, eu estava trocando ideia com a Leci sobre a relação dela com a Sandra, essas duas são grandes artistas da nossa música, mulheres pretas, sapatão…”, conta.
Mas, mesmo já nutrindo alguma familiaridade, foi difícil conter as emoções na hora do encontro tête-à-tête. “Foi bonito porque ela é pequenininha e eu sou gigantesca, então, quando entrei no palco, abracei ela e falei: ‘Eu não vou conseguir cantar de pé para a você porque você é muito maior do que eu’. E aí cantei ajoelhada para ela uma música do Cartola, ‘O mundo é um moinho’”, narra.