O cenário tinha tudo para soar estranho à realidade do Brasil: em um salão luxuoso de Paris, a modelo californiana Alex Consani desfila vestindo uma peça única, de mangas longas, em plumas off white, desenhada pelo renomado estilista Simon Porte Jacquemus – item que, certamente, não teria saída em um país tropical.
Curiosamente, no entanto, nos comentários deste registro da Semana de Moda de Alta Costura de Paris 2025, a presença é massivamente de usuários brasileiros do TikTok. Não sem motivo. No vídeo, que soma mais de 3,3 milhões de visualizações, há algo de familiar: um trecho do funk carioca “Automotivo Angelical V4”, música do DJ ZK3 que entra na categoria do “proibidão”, como são chamadas as composições com teor sexual explícito.
“Vou ficar de quatro, bota a mão na minha nuca/ Na sequência do machuca/ Machuca, machuca/ Machuca, machuca”, canta o funkeiro, que não foi o único brasileiro a ter sua música usada em uma passarela francesa – ou, ao menos, nos cortes de vídeos desses desfiles. No caso de Alex Consani, primeira mulher trans a receber o título de Modelo do Ano, o British Fashion Council, é verdade, sim, que a associação com o funk brasileiro é antiga: no TikTok, ela foi “adotada” pelos brasileiros, sendo apelidada de “Machuca machuca” depois que vídeos seus com o trecho da “proibidão” viralizarem.
@jacquemus 🌞🪑 Look 40 of the #Jacquemus « La Croisière » Show in Paris. #AlexConsani #devoraste💋 ♬ original sound - MUSİCALY
Mas, neste ano, mesmo modelos e grifes que não tinham uma relação pregressa com o funk carioca parecem ter se rendido ao gênero. Uma escolha que parece ter sido feita com a calculadora na mão, de olho nos números que o engajamento “BR” potencialmente entregam. Afinal, se o Tio Sam já quis a nossa batucada, agora o interesse parece ser também os nossos likes, comentários, visualizações e compartilhamentos.
“A música é um dos elementos mais utilizados para o engajamento de trends nas plataformas digitais do Brasil. Esse tipo de recurso aumenta o potencial de familiaridade para chamar a atenção dos usuários. Em milésimos de segundos, a música é reconhecida e se conecta com as emoções de quem está assistindo. Já existe um padrão esperado, que cria essa conexão. E, certamente, as marcas já entenderam o funcionamento desse mecanismo”, avalia a doutora em comunicação social e redes sociais Luciana Andrade, que pesquisa as dinâmicas das comunidades de fãs, fandoms, lideradas por brasileiros.
Outro elemento que precisa ser considerado, no caso específico da Semana de Moda de Alta Costura de Paris 2025, é a carga simbólica de ruptura, contestação e quebra das regras tradicionais que o funk comunica. Uma característica que pode agregar significado aos desfiles – tanto que um “proibidão” já havia embalado, há 3 anos, um desfile da marca francesa Mugler. “Existe uma mensagem que está sendo desenvolvida, que vai além do engajamento das redes sociais, mas que se beneficia da regência algorítmica para ganhar alcance e visibilidade”, examina.
Hiper engajados
O engajamento dos brasileiros nas redes, claro, não é propriamente uma novidade. Quando, no ano passado, a rede social X foi suspensa no Brasil, por desrespeitar decisões judiciais, a jornalista norte-americana Taylor Lorenz, especializada na cobertura da cultura na internet, classificou o episódio de “queima da Biblioteca de Alexandria para fandoms”. Em um artigo, ela lembrou que os brasileiros sempre foram uma força vocal online, capaz de ressuscitarem sozinhos programas de televisão, filmes, músicas e celebridades, empurrando-as ao mainstream da cultura popular.
Uma forte presença online que, mais uma vez, se fez sentir com a mobilização no entorno da campanha do filme “Ainda Estou Aqui” e de sua protagonista, Fernanda Torres, que concorrem a estatuetas em três categorias no Oscar 2025 – Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz.
“A intensa participação dos brasileiros nas redes sociais traz componentes culturais e fala muito da nossa dinâmica social. Vivenciamos uma cultural extremamente relacional, de intensa sociabilidade. Então, é natural que essa comunidade seja criada com mais intensidade dentro dos ambientes digitais. Porém, pelo próprio funcionamento do algoritmo e pelo contexto de polarização de pensamento, essa participação constante pode beneficiar marcas e produtos nacionais, mas também pode gerar um cenário de hostilidade”, elabora Luciana Andrade. “No caso da repercussão do filme ‘Ainda Estou Aqui’, enxergamos claramente uma disputa narrativa”, complementa.
A pesquisadora lembra que, de um lado, há pessoas que enaltecem o cinema brasileiro e a conquista de uma mulher no centro das atenções em Hollywood, e, de outro, manifestações políticas são claramente percebidas em forma de repulsa e retaliação. “Além disso, os brasileiros têm se empenhado muito em desqualificar outras atrizes que estão concorrendo com a Fernanda Torres, mostrando como as emoções ficam à flor da pele quando se está dentro de uma comunidade, seja virtual ou não”, acrescenta.
Soft power brasileiro?
No mínimo, o engajamento brasileiro nas redes sociais tem se provado, ao longo dos anos, capaz de ampliar a visibilidade de produtos culturais, nacionais ou não. Um fenômeno que, para muitos, representa um soft power do país, como é chamado o poder de uma comunidade influenciar indiretamente o comportamento de outros corpos políticos.
Luciana Andrade, por outro lado, faz uma leitura mais cautelosa dessa dinâmica. “De certo modo, podemos dizer que há uma ilusão de poder”, sugere. “A ideia dos ambientes digitais como espaços democráticos, em que todos podem participar e exercer alguma influência, é completamente ilusório. Mesmo que as músicas brasileiras e outros códigos culturais estejam sendo utilizados para gerar engajamento fora do Brasil, ainda existe uma disputa narrativa que deixa bem claro que lugar a cultura brasileira ocupa nesses lugares. Não podemos olhar de forma ingênua para esse fenômeno e achar que estamos ganhando espaço de poder”, reforça.
Para a estudiosa, o que existe é um aumento de visibilidade, mas que ainda carece de uma melhor formulação do resultado dessa alta exposição para a dinâmica social em outras culturas. “É claro que tem um componente positivo, mas precisa ser mais bem formulado para não ser apenas uma ‘ferramenta de engajamento barato’”, assinala.
Instrumentalizados
No último fim de semana, um episódio envolvendo um ícone brasileiro, Milton Nascimento, em uma grande premiação da música pop, o Grammy, parece confirmar as ponderações de Luciana Andrade.
Durante a cerimônia, a força dos fandoms brasileiros se fez notável nas redes sociais. A título de exemplo, as publicações de Willow Smith podem servir de termômetro. No perfil dela, no Instagram, nenhum post teve tantas interações, nem de longe, como a foto em que aparece tietando o músico, que concorria na premiação na categoria de Melhor Álbum de Jazz Vocal por “Milton + Esperanza”.
Bituca, porém, nem sequer teve garantido um lugar para se sentar na área VIP do evento, o que gerou protestos de Esperanza Spalding, da “internet BR” e até do Ministério da Cultura, que manifestou “repúdio ao tratamento dispensado ao cantor, compositor e multi-instrumentista”. Um barulho que, até o momento, não foi suficiente para que o Grammy se manifestasse sobre o caso.
“Não é porque estamos em evidência nas redes sociais, com músicas e personagens sendo compartilhados a exaustão, que seremos reconhecidos dentro dessa dinâmica política e social”, analisa Luciana.
“Certamente, o engajamento brasileiro tem sido instrumentalizado pela indústria do entretenimento. Não tenho a menor dúvida. Isso nos lembra de outras dinâmicas parecidas, como o futebol e o Carnaval, por exemplo. Fenômenos de muita visibilidade, mas que sempre estão no cerne do preconceito político e social”, situa, alertando que, além de ineficaz em algumas situações, a organização social dos fandoms pode ser nociva quando representa uma identificação extremada, fetichizada, por um objeto cultural, a ponto de qualquer discordância se tornar motivo de ruptura e conflito.
“Infelizmente, essa polarização extremista de sentimentos e opiniões faz parte da lógica algorítmica das redes sociais, além de ser claramente influenciada pelo contexto em que estamos vivendo. As pessoas se fecham dentro da bolha e conversam apenas com os seus pares. A ideia é reprimir o diferente e atrair apenas quem pensa da mesma forma. Isso, muitas vezes, traz uma experiência negativa para o crescimento e amadurecimento da comunidade”, finaliza.