Só agora que o cinema brasileiro começou a se interessar pela comédia romântica musical, base, por exemplo, de "Meu Sangue Ferve por Você", cinebiografia sobre o cantor Sidney Magal lançada no ano passado. Sem essa relação histórica com o gênero, que é muito comum em Hollywood, o primeiro desafio de "O Melhor Amigo", em cartaz nos cinemas, é vencer essa desconfiança inicial do público.
O segundo obstáculo é a reverência a determinada época - no caso, a década de 1980 - a partir de sua seleção musical, o que exige um certo conhecimento do contexto das canções. Elas nos ajudam a nos localizar no espaço-tempo, sobre o significado de cada uma delas e a forma como são inseridas na trama. A entrada em cena de Gretchen, em carne e osso, nos remete à objetificação da mulher na época e a redescoberta pelo LGBTQIA+.
Essa é a combinação que o diretor Allan Deberton promove em seu segundo longa-metragem (ele assina o ótimo "Pacarrete"), misturando cenas cantadas e trilha sonora com músicas-chiclete de quatro décadas atrás (além de Gretchen, há desde grupos como Herva Doce e Blitz a Sandra de Sá e Zizi Possi) a uma história amorosa gay que segue alguns códigos dos romances americanos.
Está tudo lá, mas numa outra chave, por vezes debochada, que leva para uma jornada de autodescoberta promovida pelo protagonista Lucas. O arquiteto tem uma vida muito morna até decidir ir para um lugar paradisíaco - Canoa Quebrada, no Ceará, estado natal de Deberton. Como nos congêneres americanos que se apropriam desta mudança para estabelecer uma espécie de segunda chance, Lucas passa a ter novas opções.
Apesar de ser um filme solar, que se aproveita do clima quente nordestino sem recair em estereótipos, "O Melhor Amigo" não traz cenas de alta voltagem erótica. É uma história sobre desejos, decepções e aprendizados. Apesar das releituras, várias das músicas oitentistas carregam um quê de fossa, como "Perigo", de Zizi Possi, e "Escrito nas Estrelas", de Tetê Espíndola, assinalando as marcas e os riscos de um grande amor.
As músicas e os diálogos cantados provocam um deslocamento sensorial, um estranhamento que caracteriza o sentimento de medo e frustração do protagonista. Ele é o oposto de seu alvo amoroso. Enquanto Lucas é previsível e metódico, Felipe é escorregadio e inquieto. Nos lembra os muitos losers do cinema americano, que queriam ser mais do que poderiam, mas sem se arrependerem de terem tentado. Assim também "O Melhor Amigo".