“Nunca gostei de política!”. A frase poderia soar incoerente, não viesse ela de Lobão, habituado a quebrar expectativas ao longo de uma trajetória que acumula cinco décadas na música, envolta em polêmicas graças a seu espírito contestador e inquieto. Nos últimos tempos, o músico que praticou ataques virulentos à esquerda e defendeu pautas caras à direita, inclusive apoiando seus candidatos, decidiu abandonar o debate público sobre os rumos do país, concentrando-se em seu ofício.
Lobão justifica dizendo que o comportamento é parte de seu “mecanismo de desterritorialização”, como um autêntico nômade que se entrega aos caminhos com a mesma intensidade com que os abandona. Como exemplo, relembra a relação com o futebol. “Eu era fanático pelo Flamengo até 1970, mas meu time de botão era Atlético Mineiro”, detalha, em mais um episódio que reforça sua essência contraditória. “Esse sentimento foi definhando até desaparecer, hoje não sei mais quem é a bola…”, brinca.
Ideologia?
Ele, no entanto, a exemplo do que cantava Édith Piaf (1915-1963), não se arrepende de nada. “Experimentei várias drogas pesadas na minha vida e resolvi experimentar também, muito a contragosto, a política, e, como em tudo, adentrei intensamente nos dois lados. Só posso opinar sobre esse assunto porque tive uma experiência profunda e saí enriquecido intelectualmente, sou grato a tudo isso. Apoiei o PT, a direita, tenho amigos no MST até hoje. Nesse caso, sou um tremendo traidor, não estou nem aí!”, declara Lobão, para quem “a ideologia precisa ser extinta”. “É um raquitismo intelectual que te reduz a um inseto. E é uma coisa recente na história da civilização, até o século XVIII as pessoas viviam sem ideologia, isso começou com (o filósofo) Augusto Comte e o positivismo, a psicanálise, o integralismo e todas essas besteiras de péssimo gosto para pessoas que se reduzem”, dispara.
Essa “metralhadora giratória” de pensamentos estará voltada para potentes canções no espetáculo que Lobão realiza neste sábado (15) em Belo Horizonte, numa casa nobre que ele conhece bem. “O Palácio das Artes foi o primeiro lugar que toquei em BH, de terno também, estou acostumado e acho que a minha música é perfeitamente compatível com o ambiente, me sinto tão à vontade como no Theatro Municipal de São Paulo, onde toquei outro dia”, diz, referindo-se à vestimenta com que aparece nos cartazes de divulgação. Sua última passagem pela capital mineira foi “emblemática”. “Era o início da turnê e após o show veio a notícia que a pandemia de Covid estava pegando pra valer. Teve um gosto agridoce, foi um show muito passional”, lembra.
Repertório
Lobão define a atual apresentação como “intermediária” entre as comemorações de seus 50 anos de carreira, ou “Vida Bandida” – numa alusão a um de seus inúmeros hits –, e os trabalhos mais recentes. No repertório, além de sucessos como “Corações Psicodélicos”, “Rádio Blá”, “Me Chama”, “Vida Louca Vida”, “Essa Noite, Não”, dentre outros, ele promete brindar o público com suas “Canções de Quarentena”, a exemplo de “Disparada”, clássico de Geraldo Vandré, e aquelas dos anos 1980 que o músico revisitou com o grupo Os Eremitas da Montanha, gravando de Paulo Ricardo a Guilherme Arantes. Para completar, haverá as inéditas que ele prepara para seu próximo álbum, batizado “Vale da Estranheza”, e já com nove composições, a maioria feita na viola caipira.
“Estou com vontade de experimentar essas músicas novas em shows”, conta. Uma participação mais do que especial no futuro rebento será a do renomado diretor teatral Gerald Thomas, convocado para tocar um instrumento associado ao barroco. “Vamos achar um órgão em alguma igreja, ou no mosteiro de São Bento, e ele vai improvisar uma introdução. A gente se fala todo dia. O Gerald é parceiro de alma desse disco, está presenciando tudo, dando mil dicas”, revela Lobão, que começou na música psicodélica na década de 1970, com o grupo Vímana, ao lado de Lulu Santos e Ritchie, antes de conhecer Evandro Mesquita e partir para a Blitz, tocando como baterista de Marina Lima nesse meio-tempo.
Algoritmos
“Fiquei apaixonado por Stravinsky depois de ouvir Yes. Isso me levou para os concertos de jazz, assisti Oscar Peterson, Charles Mingus, Miles Davis, Gary Burton, Herbie Hancock. Aí vi o Evandro (Mesquita) cantando ‘Vítima do Amor’ no intervalo de uma peça do (grupo) Asdrúbal Trouxe o Trombone e parti para coisas mais simples. O meu primeiro disco solo, ‘Cena de Cinema’ (de 1982) está muito impregnado por Elvis Costello. Comecei a ter experiência com música com letra, com canções”, relata. Nesse ponto, ele teve um encontro decisivo com Bernardo Vilhena, letrista de “Revanche”, “Vida Bandida”, “Chorando no Campo” e “Vida Louca Vida”. Após anos de rompimento por desavenças políticas, os dois voltaram a compor juntos.
“Bernardo foi um dos caras que mais me incentivou a escrever, sempre tive preguiça. Era uma figura paterna, até pela diferença de idade. Estou muito feliz de reencontrá-lo”, agradece Lobão. Recentemente, ele disponibilizou nas redes um trecho de “Canções de Um Novo Show”, nova parceria com Vilhena, que versa sobre algoritmos.
A temática tecnológica é um dos motes de “Vale da Estranheza”, cujo batismo nasceu de uma série sobre robótica e andróides e se refere à “síndrome que acomete o ser humano quando na presença de um robô que tem os mesmos cacoetes e a mesma mímica facial”. “Segundo os estudiosos de plantão, é uma coisa tão próxima no sentido da aparência e tão diversa interiormente, por ser formado de transistores e metal, que nos causa uma reação específica de estranheza”, explica o músico.
Máquina
Afora esse contexto, “por si só interessantíssimo”, Lobão considera que o título abarca “uma abrangência conceitual capaz de render uma opereta”. Ele cita outra nova canção, composta em inglês, que flagra o romance entre um ser humano e uma robô. “A ideia é que são duas máquinas, muito embora de naturezas diversas. Temos lidado com reinos sensíveis como da inteligência artificial, mas, antes de qualquer coisa, o ser humano é uma máquina com quase nenhum nível de consciência, que age como o joelho ao reflexo do martelinho do médico, quase mecanicamente. Não podemos achar que a máquina é mais máquina do que a gente”, defende. Outro conceito que tem atiçado a sua curiosidade é a falta de território.
“Compus uma música que se chama ‘Desterritório’. Sou essa pessoa sem turma, sem partido, sem filiação, sem time. Não me considero patriota, a nação não me engloba”, enumera Lobão, que acredita que a humanidade se encaminha para esse desgarramento. “À medida em que vamos explorando outros rincões do espaço sideral, essa ideia de território tende a se dissipar. Se conquistarmos Marte, provavelmente vamos nos sentir mais terráqueos do que ligados a um quarteirão, uma vila, um país. Acho que a desterritorialização é uma das salvações da humanidade, que vai nos permitir se tornar um todo ao invés de nos apegarmos às partes”, reflete o músico.
Sítio do avô reacende lembranças
Lobão tem publicado vídeos na internet em que visita o sítio do avô onde passou a infância, na região serrana do Rio de Janeiro. “Divulgo, mas não interajo. A minha ideia é expor aquilo que foi tão importante para a minha formação poética, transcendental, e que ainda mora em mim. Mesmo que tenha sofrido por ter sido deserdado, banido, e, como adolescente, não ter tido condições de lidar com essa rejeição. Mas percebi que é minha maior herança. Algumas pessoas falam ‘ah, é filhinho de papai, riquinho’, mas não entendem que a beleza é ter perdido tudo aquilo e me reinventado do zero, sem um tostão a não ser o meu violão”, recorda.
Apesar de revisitar as memórias, o foco do músico segue sendo o próximo lance. No ano passado, ele participou do podcast “Sem Filtro”, ao lado do crítico musical Régis Tadeu, a quem agradece pela “acolhida amorosa e o papo agradável”, mas admite que o tempo da gravação o impacientava. Cheio de planos, com discos, shows e turnês na estrada e a caminho, ele se nega a decretar o álbum mais importante de sua trajetória. “O dia que eu disser que é esse ou aquele estou morto, o melhor está sempre por vir, sigo em fase de crescimento”, arremata, aos 67 anos, o sempre mutável Lobão.
Serviço
O quê. Show “50 Anos de Vida Bandida”, de Lobão
Quando. Neste sábado (15), às 21h
Onde. Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)
Quanto. A partir de R$110 na bilheteria do teatro ou pelo site www.eventim.com.br