As mãos que habitualmente vibravam no ar descansam no colo, como na iminência de uma prece. A obscuridade que desce sobre seu corpo e esconde os provocativos olhos é atenuada pela luz de uma brilhante intensidade a incidir, primeiro, sobre o ombro e, num movimento sutil e compacto, detém toda escuridão, impondo a sua força.

A capa do disco de 1973, criada por Aldo Luiz a partir da fotografia de Jacques Avadis, é uma das mais expressivas do culto e da voz que abrigava Elis Regina, cantora nascida há 80 anos que teve a vida precocemente interrompida em 1982, após uma overdose de álcool e cocaína. À ocasião, já era considerada a maior intérprete que o Brasil assistiu.

Naquele álbum, as faixas se revezavam entre Gilberto Gil e a dupla João Bosco & Aldir Blanc, com menção honrosa para o resgate do samba “É Com Esse Que Eu Vou”, de Pedro Caetano, e de “Folhas Secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, culpada da querela jamais resolvida com Beth Carvalho, que intencionava lançar a pérola primeiro.

“Agnus Sei”, que deu a João Bosco sua estreia oficial, num compacto do semanário Pasquim dividido com ninguém menos que Tom Jobim, integra o álbum. Um ano antes, em 1972, ele sentiu o assombro de ver uma composição de sua autoria ganhar a voz de Elis Regina pela primeira vez. Era “Bala com Bala”, também com Aldir.

Encontro

“A Elis já era uma pessoa bastante conhecida nacionalmente, apresentava um programa de televisão em São Paulo, ‘O Fino da Bossa’, e tinha um repertório muito diverso. Eu adorava isso porque, ao longo do tempo, meu trabalho também se mostrou bastante plural”, recorda João Bosco, que, no próximo dia 28, se apresenta na capital paulista ao lado de Fagner e Ivan Lins com um show inédito em homenagem a Elis que ele espera que chegue a Belo Horizonte.

Amigos em comum como Vinicius de Moraes, Carlos Scliar, Sérgio Ricardo e Ziraldo falaram de João Bosco para Elis, que logo se interessou pela obra do mineiro de Ponte Nova. O encontro aconteceu no Teatro da Praia, em Copacabana, e João, com seu violão, exibiu uma série de canções.

“Ela se dizia impressionada com Minas, tinha acabado de gravar Milton Nascimento”, conta João Bosco, que nutria o mesmo sentimento pela intérprete. “Elis tinha uma divisão rítmica muito pessoal, era uma cantora completa, com uma noção precisa da palavra, do arranjo, e isso tudo levava a interpretações que, até hoje, eu chamo de definitivas”, sublinha. Passando um final de semana na casa dos pais, em Ponte Nova, João não escondeu o espanto quando o chamaram avisando que Elis Regina estava ao telefone.

Ao atender, ouviu da amiga que ela acabava de sair do estúdio e se sentia “mais resistente” depois de gravar “Caça à Raposa”, em 1974. “Entendi na hora o que ela quis dizer porque, diferentemente de outras músicas, nesta eu compus a melodia primeiro e entreguei para o Aldir colocar a letra, e, quando ele me mostrou, tive a mesma sensação”, confidencia João Bosco, recordando os versos de lírica obstinação. 

Samba

“O Ato Institucional n.º 5 era recente, vivíamos uma ditadura torturadora, assassina, e, ao final da letra, o Aldir sempre encontrava aquela solução chapliniana de um novo recomeço”, contextualiza o compositor, para quem os trechos “recomeçar como canções e epidemias, como as colheitas, como a lua e a covardia, como a paixão e o fogo” mantêm uma incrível perenidade.

“Esse vigor que ele prega, de não desistir mesmo diante das maiores adversidades, é o de grandes pensadores brasileiros, como Darcy Ribeiro e Chico Buarque. Elis também estava nessa linha de frente, era uma pessoa corajosa, destemida”, enaltece João Bosco, que insere a clássica “O Bêbado e a Equilibrista” no mesmo panorama. A música começou no quintal dos pais em Ponte Nova, em 25 de dezembro de 1977, quando Chaplin morreu, e, depois, Elis “a possuiu”.

“Não tenho nenhum problema em dizer que esse samba é também da Elis, porque ela o defende como se fosse um filho”, afiança João Bosco. Não por acaso, foi a primeira na qual Laila Garin pensou ao montar o repertório dos shows que ela realiza em Porto Alegre, cidade natal da homenageada, como parte da exposição “Elis 80”, em cartaz até o dia 25 de março. “Rancho da Goiabada”, “Ladeira da Preguiça” e “Madalena” também estão confirmadas no espetáculo, que privilegia o gênero samba.

“Elis era uma atriz cantando”, pontua Laila, que viveu a artista no musical que, durante uma década, percorreu o país com sucesso incontestável, recebendo os prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Bibi Ferreira, dentre outros. “Parece contraditório, mas Elis, com a sua autenticidade, me deu a possibilidade de ser eu mesma”, diz Laila.

Furacão

Para Laila, cada interpretação de Elis “é uma jornada”, em que o apuro técnico se combina à “capacidade de colocar a alma na música”. Com 4 anos, a atriz se assustou ao ver a mãe chorando. O motivo era a canção “Meio Termo”, de Cacaso e Lourenço Baeta, na voz de Elis. “Senti coisas que não podia entender para meu peito de criança, mas minha alma já era velha”, observa Laila.

Bianca Comparato também passou pela experiência de viver Elis, na série “Por Toda Minha Vida”, da TV Globo. Agora, ela prepara um filme de ficção sobre os bastidores do álbum “Elis & Tom”, de 1974, em que voltará ao papel da artista que, para ela, “testava limites e procurava um caminho próprio”. “Me identifico muito com a Elis, acho que ela tinha uma coisa disruptiva. A bossa nova vinha de um jeito discreto, e ela cantava dramaticamente”, diz.

Como exemplo, Bianca relembra a apresentação que catapultou Elis, no 1º Festival de Música da TV Excelsior, em 1965, quando ela venceu o concurso com “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e passou a ser chamada de “Hélice” pela maneira de dançar e mexer os braços freneticamente. Com o tempo, a fama de temperamental e esquentada rendeu-lhe os apelidos de “Pimentinha” e “Furacão”.

“Me pergunto se ela era difícil ou se estava só se colocando, vimos isso tantas vezes ser confundido ao longo da história”, ressalta Bianca, que intenciona produzir um “filme feminista”. Já o jornalista Julio Maria acaba de lançar a versão ampliada da biografia “Elis: Nada Será Como Antes”. 

Além de novos depoimentos e frases, Julio teve acesso a uma caderneta em que a cantora projetava o seu ano de 1982, com a gravação de um novo álbum. “Mais do que emocionar, entreter ou divertir, a Elis provocava assombro quando cantava, e isso aconteceu muito poucas vezes na história da música…”, arremata Julio. 

Legado 

Julio Maria estava bem distante da idolatria quando decidiu escrever a incensada biografia “Elis: Nada Será Como Antes”, de 2015, que acaba de ser relançada em versão ampliada. “A montanha-russa emocional da personagem foi o que me atraiu”, declara ele, que não tinha dúvidas de encontrar “boas histórias naquela trajetória inconstante”.

“Me interessava o lado humano, porque o mito não existe, a gente que cria. O erro, o drama, as derrotas é que vão valorizar as vitórias”, argumenta Julio. Foi no seu aniversário de nove anos que o jornalista ouviu falar em Elis pela primeira vez. Ela havia acabado de morrer, no dia 19 de janeiro de 1982. “Me lembro fortemente da música ‘Romaria’ (de Renato Teixeira) ser tocada numa rádio várias vezes”, conta Julio. 

A cantora Luisa Doné cresceu ouvindo Elis, numa família musical em que o pai também trabalhava com o ofício. Ela elege “Como Nossos Pais” a sua predileta, mas admite que o desafio é complexo. “Todas as gravações da Elis são incríveis! Admiro muito a visceralidade e a maneira como ela se porta dentro da música, com performances intensas e aquele lugar ao mesmo tempo quente e brilhante em que ela coloca a voz”, elogia Luisa.

Há quase meio século no ar, o programa “Bazar Maravilha”, comandado por Tutti Maravilha na Rádio Inconfidência, é provavelmente o único do país que toca diariamente uma música de Elis, na sessão batizada “Coisa de Comadre”, e que estreou junto com a atração, em 1983, meses após a morte da intérprete, aos 36 anos.

Sorte

Foi por intermédio de Rogério Costa, irmão de Elis, que a amizade entre ela e Tutti frutificou. Trabalhando como produtor de espetáculos em Belo Horizonte, na década de 1970, Tutti trouxe para a capital o Quinteto Violado, que tinha como técnico de som o irmão da “Pimentinha”. Durante o show, Tutti inundou Rogério de perguntas sobre a irmã, e ele logo percebeu a devoção. Quando surgiu a oportunidade de trazer Elis para uma apresentação no Teatro Francisco Nunes, Tutti foi até o aeroporto da Pampulha buscar a estrela, a bordo de seu fusquinha e de uma kombi.

Sem plaquinha de identificação, e antes que abrisse a boca, ouviu de Elis o pedido para ajudá-la a carregar as malas. “O Rogério tinha dito que eu era cabeludo e ela me reconheceu de cara!”, diverte-se Tutti, que, no hotel, constatou uma “afinidade imediata que selou a amizade”. Corria o ano de 1973, e os dois chegaram até a morar juntos, em São Paulo. Tutti guarda centenas de cartas particulares e “muito íntimas” trocadas com Elis, “impossíveis de serem publicadas”. Ele sente falta, principalmente, “das ligações ao telefone, de madrugada”.

“Naquela época não existia internet, e todo mundo se assustava quando o telefone tocava de madrugada. Mas era ela terminando um show na Bulgária, dizendo que tinha sido lindo, contando todos os detalhes”, recorda Tutti, que, certa vez, ouviu o tilintar do aparelho logo após uma entrevista de Tom Jobim ao Jornal Nacional, em que o Maestro Soberano contava ter gravado “O Trem Azul”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos.

“Ela me pediu para separar todos os discos do Lô”, diz Tutti, que atribui à “sorte na vida” o convívio que teve com Elis. “A gente escuta uma gravação dela de 1975 e parece que foi feita ontem, não envelhece, é incrível”, analisa.

Danada

Tutti é incapaz de imaginar Elis com 80 anos, e repassou a mesma pergunta para João Marcello Bôscoli, produtor musical e filho mais velho da cantora, que chegou a idêntica conclusão. “Ela tinha um pique e uma vitalidade tão grandes que não consigo pensar nela velhinha”, confessa Tutti. Ele deposita na conta de uma “forma de defesa” o gênio explosivo de Elis, mas afirma que “as pessoas exageram na dose”.

“Ela veio muito nova de Porto Alegre para o eixo Rio-São Paulo, sozinha, o pai só chegou depois, e foi muito explorada no início, então tomou raiva, ficou traumatizada, porque ela sabia que, antes de mais nada, cantava de verdade, não fingia nada”, defende Tutti. 

Com mesas de som que só possuíam oito canais, Tutti se cansou de presenciar Elis realizar uma gravação melhor do que a outra no estúdio. “Ela era danada! Falava com a gente brincando ‘o meu problema é que tudo que eu canto fica bom, posso pegar uma música ruim que ela fica boa’”, recorda-se, aos risos, o apresentador. O músico e pesquisador Rogério Skylab concorda, mas insere nuances polêmicas na avaliação.

“Ninguém vai questionar a Elis Regina como cantora. De fato, é um fenômeno na maneira fácil de cantar, potência de voz, não vejo nenhuma no mesmo nível, pode pegar Maria Bethânia, Gal Costa. Elis Regina é a maior cantora brasileira”, diz Skylab, que vincula a artista a “uma tradição lírico-dramática” da canção nacional. “Ouvindo ela cantar ‘Atrás da Porta’ (de Chico Buarque) chego a pensar que aquela interpretação é meio ‘cafona’, porque há uma exacerbação, um excesso a que a bossa nova se contrapôs”, opina Skylab, para quem o samba-jazz foi “a grande escola” de Elis Regina. 

A maior cantora do planeta

A atriz Bianca Comparato, que prepara um filme sobre Elis Regina, exalta o fato de a cantora ter “valorizado muito a cultura brasileira e a nossa maneira de cantar, resistindo às pressões do mercado, que queria que ela se dobrasse ao inglês para viajar e vender mais”. “Ela nunca escolheu esse caminho fácil, e, se estivesse aqui hoje, teria um êxito internacional muito maior. Elis se tornou um símbolo brasileiro da nossa excelência”, proclama Bianca.

O jornalista e crítico musical gaúcho Márcio Pinheiro, autor de recente livro sobre Chico Buarque, vai além. “Se cantasse em outro idioma, inglês, por exemplo, e não em uma língua que é falada em pouco mais de meia dúzia de lugares em todo o mundo, Elis não teria sido apenas a maior cantora brasileira, teria sido a maior cantora do planeta…”, vaticina ele.

“Essa minha certeza começava por ela mesma, que sempre soube que, artisticamente, nada a limitava. Afinada, inspirada, e com um talento inato para se cercar pelos melhores músicos, Elis revolucionou a história do moderno canto brasileiro numa dimensão só comparável a João Gilberto. Não é pouco para um país que já tinha Elizeth Cardoso como um referencial e que, na mesma época do aparecimento de Elis, viu surgir uma geração formada por Nana Caymmi, Gal Costa, Maria Bethânia e Nara Leão”, complementa Pinheiro.

Segundo ele, o legado de Elis vai do estilo às gravações. “Tímida que se camuflava num disfarce de desaforada, Elis Regina foi completa como artista. Se muitas cantoras brasileiras gravam discos atualmente nos melhores estúdios da Europa e dos Estados Unidos, devem isso a Elis, que, nos anos 1970, já fazia questão das melhores condições técnicas. Se outras tantas misturam gêneros em seus discos e shows, também devem isso a Elis, precursora do que se convencionou chamar de ‘cantoras ecléticas’. E se muitos artistas apresentam espetáculos recheados de elementos cênicos e coreográficos, também isso pode ser creditado a Elis, responsável por shows como ‘Falso Brilhante’ e ‘Saudade do Brasil’”, finaliza Pinheiro.