Com os seios empinados no interior da blusa negra e o cabelo preto cortado na altura do pescoço, ela serpenteia lânguida sobre o duro piso quadriculado sem perder o olhar altivo de quem gargalha deliciosamente ao ser flagrada no banheiro feminino com um homem, enquanto da boca inerte escorre um líquido escuro e espesso, num misto de erotismo e violência.
Todas essas são Helena Ignez em cenas de “O Pátio”, “A Mulher de Todos” e “A Família do Barulho”, dirigidos, respectivamente, por Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Julio Bressane, responsáveis por um cinema de transformação, invenção e reflexão do qual a atriz, mais do que musa, revelou-se uma força essencial.
A partir desta quinta (20), a artista terá sua trajetória reverenciada na mostra “A Mulher da Luz Própria”, que, dentre outros, inclui títulos como “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), “O Padre e a Moça” (1966) e o recente “A Alegria É a Prova dos Nove” (2023), contemplando tanto a atuação quanto o trabalho de direção da homenageada.
O próprio batismo da empreitada pega emprestado o nome do longa-metragem feito por Sinai Sganzerla, em 2019, sobre a mãe, e que abrirá a programação. “O desejo feminino talvez seja a origem de todo o meu trabalho, mesmo como atriz”, pontua Helena, que relaciona um mar de encontros e influências para sustentar sua afirmação.
Desejo
“A explosão desse desejo já está no cinema que fiz com o Rogério (Sganzerla), e essa liberação feminina segue conosco até o fim com o (filme) ‘O Signo do Caos’, só que pelo avesso, pela ironia, que era também uma marca do Nelson Rodrigues, que acabei de dirigir no teatro. Eles são irônicos, dizem verdades ao contrário, são chocantes, e isso vem lá de Sócrates”, detecta Helena.
A transição do palco para atrás das câmeras começou apenas nos anos 2000, embora ela jamais tenha abandonado o primeiro ofício. Em 2007, Helena estreou na direção de um longa com “Canção de Baal”, baseado na peça de Bertolt Brecht, com Carlos Careqa e Simone Spoladore no elenco.
Impossível
Segundo a entrevistada, independentemente da função desempenhada, “a paixão é sempre a mesma”. “Existe a ambição de vencer as dificuldades materiais, que não são poucas, e dar o impossível”, resume. Ela conta que somente uma vez, em 2016, durante o governo de Dilma Rousseff, conseguiu vencer um edital que lhe permitiu trabalhar com um orçamento de um milhão de reais, e pôde produzir “A Moça do Calendário” com relativa tranquilidade.
Já em “A Alegria É a Prova dos Nove”, o sofrimento teve que conviver de perto com a criatividade, num cenário ainda abalado pela pandemia de Covid-19, com os atores recorrendo às máscaras de proteção facial.
Exibido no Festival de Munique, na Alemanha, o filme foi indicado a prêmios e “conseguiu satisfazer” tanto a Helena quanto “as pessoas que apreciam esse cinema”. “O que me interessa é ruptura. Assisti um espetáculo ontem, na estreia da 10ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em que eram todos pretos africanos. As pessoas subiram no palco, inclusive eu, e parecia que eu estava de novo na Bahia, em Moçambique, foi uma catarse!”, conta.
Helena se refere a “Vagabundus”, peça do moçambicano Idio Chichava, e se recorda de quando, com 29 anos, viajou pela África ao lado do marido Rogério Sganzerla, então com 22, atravessando o deserto do Saara por terra. “Conhecemos a gente de lá, as feiras, o mercado. E a peça é isso, uma grande feira onde eles dançam feito loucos, enfiam coisas na cabeça, as pessoas não sabem fazer nada e vão ali se mostrar. O vagabundo é o maior dos artistas”, assegura.
Loucura
Antes de se envolver com Rogério Sganzerla, com quem teve duas filhas e permaneceu casada até a morte do cineasta, em 2004, Helena Ignez uniu laços matrimoniais com Glauber Rocha, principal definidor do Cinema Novo. Tinha 19 anos e havia acabado de se matricular na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia quando conheceu o criador de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964).
“Com Glauber, tive essa sensação de que a arte era transformadora e terrível, podia matar uma pessoa, como o matou, aos 42 anos, se a entrega fosse louca e vivida naquele momento”, relembra. Considerada “glamour girl” por uma sociedade que, ao mesmo tempo, oprimia e se atraía por sua “beleza diferentona”, Helena venceu um prêmio dado por “um banqueiro super gay que escandalizava aquela hipocrisia que o rodeava”.
“Ele se apaixonou por mim, me deu joias e um cheque”, revela. Com o dinheiro, ela produziu “O Pátio”, primeiro filme de Glauber, e único no qual contracenou com o diretor. O relacionamento terminou de forma tumultuada dois anos depois, mas Helena, que concomitantemente vivia uma prostituta na peça “A Sapateira Prodigiosa”, de García Lorca, guarda recordações ternas da época.
“Com Glauber, encontrei a primeira pessoa que poderia ser meu companheiro”, diz. Sobre Rogério Sganzerla, ela recupera uma frase do próprio, inserida em “A Mulher de Todos”: “Me desculpem, mas eu vi 100 anos na frente de todos vocês”. “Ele tinha que pedir desculpa porque brilhava demais por dentro. Com Rogério não aprendi, eu observei a genialidade capaz de transformar ‘nada’ em cinema, ele é praticamente aquele que deveria filmar com a mente”, vaticina.
Lágrimas
Assim como Sganzerla, Helena Ignez tem sido redescoberta “no mundo inteiro por uma meninada”, como comprova a mostra em cartaz. Ela faz questão de dividir o mérito com parceiros de vida e obra como Barbara Vida, Djin Sganzerla, André Guerreiro Lopes, Dan Nakagawa e Ney Matogrosso, este último definido como “muso” e um dos protagonistas de “A Alegria é a Prova dos Nove”.
“Esse título está entranhado no filme porque é difícil manter a alegria, e, no final, temos uma explosão performática em que as pessoas perceberam coisas ótimas, como a influência do (cineasta chileno) Jodorowsky, que eu adoro, e é bacana porque não tive nenhum modelo”, salienta ela, que tem ido às lágrimas com “o carinho surpreendente das pessoas da nova geração”.
“É bonito e muito diferente do que eu recebia antes. Sempre me acharam grande atriz, mas havia uma espécie de medo meu com os filmes que eu fiz porque, onde chegava, davam em cima de mim, havia ciúme, era uma figura jovem muito conturbada, tanto que abandonei tudo e fiquei 15 anos trabalhando só com o Rogério (Sganzerla) e comigo mesma, porque não suportava o que recebia das pessoas, era uma convivência terrível”, declara.
Helena foi buscar o equilíbrio pessoal no Tai Chi Chuan que pratica até hoje, a milenar arte marcial chinesa de meditação em movimento. Com uma sala no cinema Belas Artes de São Paulo que traz o seu nome, ela redescobriu, há cerca de três anos, uma paixão tardia pela música de Raul Seixas. “Afinal de contas eu sou baiana, não tem jeito. Amo artistas que não são racionais!”, enaltece a cineasta.
Oscar
De biquíni vermelho, chapéu branco e uma pistola na mão, ela mira o horizonte à frente do conversível azul, enquanto, ao seu lado, um homem só de calção e semblante enfadado apoia os braços na areia quente. A expressiva imagem de “O Bandido da Luz Vermelha” serviu para Fernanda Torres ilustrar, com Helena Ignez e Pablo Villaça, a capa de seu segundo romance, “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”, de 2017.
Naquele momento, não se poderia imaginar que, alguns anos depois, Fernanda seria a protagonista de “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, com o qual o Brasil faturou o inédito Oscar de melhor filme internacional.
“É um filme importantíssimo que vai muito além do cinema, mostrando a realidade absurda que nós vivíamos e que podemos viver a qualquer momento com essa extrema direita monstruosa que temos”, alerta Helena Ignez. Ela elogia o desempenho de todo elenco, inclusive Fernanda Torres, e aproveita para definir a matriarca Fernanda Montenegro como “um dragão”.
“Foi um filme feito para o Oscar que conseguiu chegar a seu objetivo. Walter Salles não é Elon Musk, que é um ser abjeto, ele é um artista milionário, não vamos ficar com problemas por causa disso”, diferencia.
Tempo
Aos 85 anos, a baiana Helena Ignez, nascida em Salvador, mantém a rotina de dança e Tai Chi Chuan em sua própria companhia. “De burra não tenho nada, essa que é a verdade. Curto todas as fases da minha vida, principalmente com ‘planta na mente’ que é uma característica da vida toda que me ilumina e me dá saúde para ir pelo caminho certo”, diz, em referência ao uso de maconha.
“Rio da velhice e imagino essa hora de deixar esse estado e ir para outro, desconhecido. Adoro o desconhecido, não tenho nenhum medo da morte”, complementa a artista, para quem Deus “é também o mar da Bahia”. “Na verdade, Deus é tuuuuuudo”, afiança, esticando a palavra. “Só uma pessoa louca, maluca, racional, quadrada, pode negar essa surpresa que é Deus, que não se tem a menor ideia porque é aqui e agora, e a gente não pode pensar que sabe tudo…”.
Para 2025, Helena se dedica a uma “ode ao teatro” que, coincidentemente, marcou seu triunfal retorno cênico no final dos anos 1990, quando ela estrelou “Savannah Bay”, de Marguerite Duras. “É uma peça sobre a memória, feita para uma mulher com mais de 80 anos, que fiz há 25 anos, e agora vou repetir no esplendor da idade”, comemora.
Lá atrás, quando foi convidada para assinar o contrato, Helena bateu o pé que só o faria com Rogério Sganzerla na direção, e teve também que convencê-lo. Após ensaiar durante oito meses sozinha, contou com a presença do marido apenas no último mês. A atual produção alia “imagens belíssimas” produzidas por Sganzerla a novidades captadas por André Guerreiro Lopes, o cineasta de “O Mel é Mais Doce que o Sangue”.
Serviço
O quê. Mostra “A Mulher da Luz Própria: o Cinema de Helena Ignez”
Quando. Desta quinta (20) a 4 de abril, com sessões às 16h, 18h20 e 20h30
Onde. Centro Cultural Unimed-BH Minas (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. Gratuito, com distribuição de ingressos 1 hora antes de cada sessão