Hoje é Carnaval! Amanhã ainda é Carnaval. Não porque esteja próxima uma Quarta-feira de Cinzas. Nem porque virou farra o som de buzinas. Mas porque o Carnaval está além da data no calendário. É a heroica alegria da bagunça e da patuscada. De se fantasiar e mascarar e perceber o desarrumado cenário belo de fantasias, máscaras e perdidas ilusões brilhantes. No Carnaval, a face desordeira da humanidade. Face divertida, bem resolvida, com muito alarde. Se tudo arrumado perde contato com a superfície mais fina de uma mera alegria, não deixe de brincar no Carnaval! 

“Ó Abre Alas” (marcha-rancho, 1899) – Chiquinha Gonzaga

As compositoras, cantoras e instrumentistas têm mostrado a cara e mudado o panorama do Carnaval na cidade de Belo Horizonte, cujo aumento da visibilidade para canções compostas por mulheres é latente. Um exemplo prático é a presença de 15 autoras inscritas no Concurso de Marchinhas Mestre Jonas 2018. Apesar do recorde, o número ainda é inferior em relação ao de homens.

Mas é uma mulher a autora da primeira música carnavalesca de sucesso da nossa história: Chiquinha Gonzaga. Composta em 1899, a marcha-rancho “Ó Abre Alas” estourou no Carnaval de 1901 e é definida pelo Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira como “pioneirismo da produção carnavalesca, antecipando-se em 20 anos à fixação do gênero”. A publicação ainda afirma que a música seguiu como a preferida dos foliões por nove anos seguidos, até as festividades de 1910.

“Pierrô Apaixonado” (marcha, 1936) – Heitor dos Prazeres e Noel Rosa

O maior êxito da carreira de Heitor dos Prazeres veio em 1936, quando, ao lado de Noel Rosa, compôs a marcha “Pierrô Apaixonado”, sucesso carnavalesco que atravessou gerações. Lançada pela dupla formada por Joel & Gaúcho, com acompanhamento da orquestra Diabos do Céu e arranjo de Pixinguinha, a música foi incluída no filme “Alô, Alô, Carnaval”, com Carmen Miranda e Oscarito no elenco. Maria Bethânia, Ivan Lins, Teresa Cristina e Gabi Milino também regravaram esse clássico.

Quando Noel escreveu a letra, menos de um ano antes de falecer vítima de tuberculose, aos 26 anos, a doença não o impediu de manter o humor, que se pode notar nos divertidos versos, que mesclam sentimentalismo com gaiatice: “Um grande amor tem sempre um triste fim/ Com o Pierrô aconteceu assim/ Levando este grande chute/ Foi tomar vermute/ Com amendoim…”. Ao fim, uma Colombina altiva e ébria manda os pretendentes às favas e sugere que eles tomem sorvete juntos.

“Anda Luzia” (marcha, 1947) – Braguinha

Não é preciso tocar um instrumento para ser um grande músico. Que o diga o carioquíssimo Lamartine Babo, de quem, sobre sua relação com a festa mais popular do país, Braguinha disse: “existe o carnaval antes e depois de Lamartine”. Já em 1934, Lamartine comprovava a tese ao compor a marchinha “Rasguei a Minha Fantasia”, com o palhaço como personagem principal. Braguinha, a seu modo, também tocou nesse tema, com a melancólica “Anda Luzia”, marcha lançada em 1947, por Sílvio Caldas, e regravada com primor pela cantora Maria Bethânia. “Apronta a tua fantasia/ Alegra o teu olhar profundo/ A vida dura só um dia, Luzia/ E não se leva nada desse mundo…”. 

“Sassaricando” (marchinha, 1952) – Luiz Antonio, Oldemar Magalhães e Jota Júnior

Composta sob encomenda para a peça “Jabaculê do Penacho”, a marchinha “Sassaricando” era destinada a animar o quadro “A Dança do Sassarico”. No entanto, ela agradou tanto ao produtor Valter Pinto que o espetáculo mudou de nome para “Eu Quero Sassaricar”. Interpretada por Virgínia Lane foi o maior sucesso do Carnaval de 1952. Mas não ficou restrita ao período. Em 1987, batizou novela de sucesso da Rede Globo, com Cláudia Raia como destaque. Em 2007, “Sassaricando” virou musical com Eduardo Dussek e Soraya Ravenle no elenco. De autoria de Luiz Antonio, Oldemar Magalhães e Jota Júnior, que utilizou o pseudônimo Zé Mário, a música foi regravada por Rita Lee e Jorge Veiga.

“Adeus de Carnaval” (marcha-rancho, 1967) – Maria Inês Aroeira Braga

A história de “Adeus de Carnaval” é curiosa, só para adjetivar. Pois, na verdade, é muito mais. Composta no fim da década de 1960 por Maria Inês Aroeira Braga, poeta, mística e artista plástica mineira, a música retornou à tona anos depois, em 2014 quando, por iniciativa de seu irmão, Marcelo Aroeira, ela foi gravada em estúdio pelo cantor Mauro Zockratto. Mas seu percurso ainda não tinha terminado.

Três anos depois, em 2017, inscrita no “Concurso de Marchinhas Mestre Jonas” foi selecionada entre as finalistas para ser apresentada num show. Feita esta parábola, vamos à sua história, que remonta a todas as tradições carnavalescas, começando por seu ritmo, a marcha-rancho, alusão aos antigos ranchos que desfilavam nas ruas antes das escolas de samba e, claro, aos amores desfeitos que, desde Colombina, Arlequim e Pierrô enfeitam e colorem os carnavais brasileiros. Viva nossa festa!

“Atrás do Trio Elétrico” (frevo, 1969) – Caetano Veloso

Em 1969, enquanto no Carnaval de Salvador o povo cantava e dançava “Atrás do Trio Elétrico”, seu autor vivia no Rio a expectativa de ser libertado da prisão imposta pela ditadura. A libertação aconteceu somente na quarta-feira de cinzas, só que de forma parcial, pois Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a um regime de confinamento na Bahia, seguindo-se o exílio em Londres. Gravada inicialmente num compacto em 1968, com Caetano Veloso acompanhado por um pequeno grupo dirigido por Rogério Duprat, esta marcha-frevo, mais tarde alcunhada de frevo baiano, homenageava o Trio Elétrico de Dodô e Osmar, com a frase inicial que se tornou praticamente um dito popular: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu…”.

“Deixa Sangrar” (marcha-frevo, 1970) – Caetano Veloso

Maria da Graça assinou o primeiro compacto com o nome de batismo, mas, já ao dividir o LP “Domingo”, com Caetano Veloso, em 1967, e participar de “Tropicália ou Panis et Circencis”, de 1968, passou a atender por Gal Costa. Nascida em Salvador, no dia 26 de setembro de 1945, Gal é uma das maiores cantoras da história da música brasileira, e se destaca tanto pela afinação quanto pelo timbre de voz cristalino. Ao longo de sua profícua carreira, Gal gravou mais de 40 álbuns. Entre seus sucessos estão músicas como “Festa do Interior”, “Bloco do Prazer”, “Meu Nome É Gal”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Um Dia de Domingo”, “Baby”, “Chuva de Prata”, “Vapor Barato”, “Pérola Negra”, e muitos outros. Musa da Tropicália, Gal colocou na praça, em 1970, a marcha-frevo “Deixa Sangrar”, mais uma pérola de Caetano dedicada à folia carnavalesca. 

“Firme e Forte” (samba de carnaval, 1983) – Éfson e Nei Lopes

O bloco carnavalesco Cacique de Ramos tinha, entre seus integrantes mais aficionados, o carioca Edson Ferreira, que adotou o nome artístico de Éfson. Foi com essa alcunha que ele surgiu para o mundo do samba e, em 1983, compôs com Nei Lopes a música “Firme e Forte”. Lançada por Beth Carvalho naquele mesmo ano, a canção logo se tornou um clássico do repertório da cantora, e foi fundamental para o sucesso do disco “Suor no Rosto”, que, não por acaso, trazia na capa a imagem de Beth em meio a confetes e serpentinas. O recado era claro como os versos do samba: “Aproveita hoje porque a vida é uma só/ O amanhã quem sabe se é melhor ou se é pior/ Deixa correr frouxo que esquentar não é legal/ Se o Brás é tesoureiro a gente acerta no final/ Pois Deus é brasileiro e a vida/ É um grande Carnaval”. Eis um sucesso atemporal…

“Vai Passar” (samba, 1984) – Chico Buarque e Francis Hime

Um dos maiores clássicos de Chico Buarque só foi concluído no estúdio, em cima do laço da gravação. Chico estava envolvido com a peça “Dr. Getúlio”, de Dias Gomes e Ferreira Gullar, para a qual compunha a trilha sonora, quando começou a nascer o samba “Vai Passar”. A ideia inicial era dividir a canção com um grupo de compositores, na linha dos sambas-enredos, mas ela acabou no colo de Francis Hime, que a tomou para si com toda a capacidade melódica. Com versos de exaltação, “Vai Passar” é um prenúncio do fim da ditadura militar, e chegou à praça um ano antes da derrocada final do regime, em 1984. “O estandarte do sanatório geral vai passar…”, dizem alguns dos versos mais empolgantes. Lançada por Chico em 1984, ela foi regravada por Francis Hime.

“Dionísio, Deus do Vinho e do Prazer” (marchinha, 2014) – Péricles Cavalcanti

Após um período de ostracismo na carreira, com longos intervalos sem gravadora, a intrépida Maria Alcina voltou a gozar de prestígio nos últimos anos junto à crítica e ao público e também entre seus colegas. O álbum “De Normal Bastam os Outros” é uma iniciativa do produtor Thiago Marques Luiz para comemorar os 40 anos de carreira da intérprete.

“É engraçado ver que as pessoas não esquecem você, e receber esse carinho dos colegas de profissão foi fantástico, fiquei emocionadíssima”, declara. No disco, além de protagonizar dueto com Ney Matogrosso, Alcina recebeu canções feitas especialmente para ela por Zeca Baleiro, Arnaldo Antunes, Péricles Cavalcanti e Anastácia, cujos títulos são autoexplicativos, como nos casos de “Eu Sou Alcina” e “Dionísio, Deus do Vinho e do Prazer”, onde ela canta: “Pode me chamar de Carnaval…!”.

*Bônus

“Santo Profano, Deusa Mulher” (marchinha, 2018) – Raphael Vidigal Aroeira e Marcos Frederico 

Nos últimos anos, além dos bares, BH tornou-se também a capital do Carnaval. Com uma programação ampla e diversificada, a cidade passou a receber os tão tradicionais e antigos blocos carnavalescos que, ao remeter à memória, trouxeram suas próprias inovações com misturas inusitadas e, acima de tudo, festeiras. Vale fantasia, vale confete e serpentina, principalmente, vale alegria!

O ressurgimento do Carnaval de BH está intrinsicamente ligado à questão política, pois partiu da ocupação do espaço da chamada “Praia da Estação”, com trajes de banho pelos militantes, depois de uma proibição por parte da prefeitura. “Santo Profano, Deusa Mulher”, de Raphael Vidigal Aroeira e Marcos Frederico, retoma os signos dessa festa cheia de rebeldia. A música foi finalista do Concurso Mestre Jonas.