O juízo que Edy Star faz de si mesmo não é nada condescendente. “Eu sou má!”, gargalha. A fama, ao contrário da de Erasmo Carlos, tem um motivo sinistro. “Vou ao cemitério para mijar na tumba das pessoas que me fizeram mal e sinto um prazer muito grande nisso”, dispara, sem dourar a pílula, outro traço marcante de sua personalidade, muitas vezes descrita como exótica, extravagante e até pitoresca.
Aos 87 anos, o artista que lançou mão de inúmeros recursos durante sua carreira, do canto à atuação, passando pela pintura e pela dança, é tema de uma biografia escrita pelo historiador e pesquisador musical Ricardo Santhiago, intitulada “Eu Só Fiz Viver: A História Oral Desavergonhada de Edy Star”, que traz colaborações de Igor Lemos Moreira e Daniel Lopes Saraiva. “Edy é artista em tempo integral, é alguém que vive plenamente o seu desejo”, resume Santhiago, que escreveu livros sobre Miriam Batucada e Alaíde Costa.
Edy e Santhiago, inclusive, tiveram o primeiro contato durante as entrevistas sobre Miriam Batucada, com quem o artista gravou o histórico LP “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, em 1970, ao lado de Sérgio Sampaio e Raul Seixas, e que vem sendo cada vez mais cultuado ao longo do tempo. “Fiquei absolutamente fascinado, porque Edy é essa figura eloquente, divertida, a mesma que você vê no palco, uma não se distingue da outra”, garante Santhiago, que considera o biografado “uma personagem central da cultura underground no Brasil”.
A vontade de “compreender e desconstruir” o sujeito por trás da persona, nesse jogo-duplo, foi o que moveu o pesquisador na empreitada, inaugurada com o lançamento de “Diário de Um Invertido: Escritos Líricos, Aflitos e Despudorados”, em 2022, a partir de textos íntimos da lavra de Edy, que remontavam à adolescência vivida em Juazeiro, sua cidade natal.
Histórias escandalosas
“Ele tem muitas histórias de desespero, histórias de coragem, ousadia, é uma potência de vida, imagina você se colocar publicamente como um artista gay na década de 1970, em plena ditadura militar?”, exalta Santhiago. Representante do chamado glam rock tupiniquim, Edy despertou atenção ao participar da montagem brasileira do musical “Rocky Horror Show”, em 1974.
No mesmo ano, estreou em disco com “Sweet Edy”, com músicas feitas especialmente para ele por Caetano Veloso, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Roberto & Erasmo, e pelo amigo Gilberto Gil, de quem é parceiro na clássica “Procissão”, de 1967. No auge dessa aclamação, questionado pela revista “Fatos & Fotos”, em 1975, Edy creditou o sucesso à verdade: “Assumi o que eu sou”. A sinceridade segue intacta após décadas de seu “aparecimento artístico”.
“Tudo o que me foi perguntado, eu respondi. Agora, eu sinto falta de umas coisas mais picantes que as pessoas queriam ver no livro, elas esperavam histórias escandalosas da minha parte, e claro que elas existem, mas não me foi perguntado. Mas não se preocupe não, daqui um tempo eu divulgo o que não foi publicado”, provoca Edy, que salienta não ter arrependimento algum, sem negar o adjetivo de “vingativo”, e aproveita para cantarolar os versos em francês de “Non, Je Ne Regrette Rien”, eternizada por Édith Piaf (1915-1963).
“Me arrependo do que eu não tive oportunidade de fazer. Eu sou uma pessoa cheia de projetos, e não é por culpa minha que eles não são feitos, mas porque todo o esquema não te dá oportunidade de fazer”, reclama o cantor. Após quase 20 anos morando na Espanha, Edy voltou ao Brasil em meados dos anos 2000.
Da Bahia à Espanha
Santhiago esclarece que todo trabalho de pesquisa é resultado de um intenso diálogo entre ele e Edy, aspecto que determinou a própria estrutura do livro, narrado em primeira pessoa. O longo período de Edy como migrante clandestino em Barcelona e Madrid, onde atuou em cabarés e escreveu peças de forte apelo popular, foi um dos pontos de atenção de Santhiago.
“As estratégias de sobrevivência que ele utilizou para construir uma carreira bem-sucedida na noite, vivendo da arte, me interessavam muito”, confirma. Geralmente pouco explorada, a experiência como técnico petroleiro no interior da Bahia também foi abordada por Santhiago. “A gente entra em contato com um jovem afeminado, se descobrindo gay, num universo absolutamente masculino e adverso em vários sentidos”, aponta, sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto.
Para Santhiago, o documentário “Antes Que Me Esqueçam, Meu Nome É Edy Star”, de Fernando Moraes, que estreou no final do ano passado, é “complementar” a seu livro. “Edy é um manancial de experiências que nos mostra que é possível viver com coragem, sendo realmente aquilo que a gente tem vontade de ser”, sustenta. Esse caminho, evidentemente, teve pedras, como duas tentativas de suicídio e a cura de um câncer de próstata.
No campo profissional, Edy “abandonou uma série de oportunidades de maior consagração comercial, movido pelo desejo de viver sua verdade, digladiando-se com aspectos doídos, desafiadores, diante dessa intensidade”. Edy confessa que apenas contou uma história que ainda está vivendo. “Não sei se servirá de exemplo para alguém, se é edificante, mas não estou interessado nisso”, diz.
Homenagem a Raul e parceria com Maria Alcina
No início de 2025, Edy Star foi às redes sociais desabafar sobre as dificuldades para viabilizar o álbum em homenagem a Raul Seixas, mas ele deixa claro que não desistiu do projeto. “O disco ainda não deu certo porque a (gravadora) Warner está cobrando uma exorbitância (pelo direito das músicas). Mas ele ainda pode dar certo, podemos fazer uma série de vinis, ou em CD, essa ideia não está morta e enterrada de jeito nenhum, você está doido?”, indaga.
A vontade de Edy é que a pendência se resolva a tempo de celebrar os 80 anos de nascimento do “Maluco Beleza”, em junho, e se integra a um projeto mais amplo, iniciado com o tributo “Meu Amigo Sérgio Sampaio”, de 2023, e que ainda prevê títulos, nessa mesma linhagem, a Gilberto Gil e Zé Rodrix.
Paralelamente, Edy prepara um álbum em dueto com Maria Alcina, produzido por Zeca Baleiro, a partir da coletânea de uma série de marchinhas de Carnaval consideradas “pornográficas”. “Imagina eu e Maria Alcina, dois malucos juntos no palco, que maravilha!”, diverte-se, recordando as inúmeras vezes em que tomou a ribalta ao lado da amiga, responsável por levá-lo para substituí-la na afamada boate Number One, no Rio, naquele apogeu da glória carioca, vivenciada nos anos 1970.
“Um bom nome para o disco talvez seja ‘As Aventuras de Bacurau e Bacurinha’!”, prossegue, sem dispensar a verve irreverente, numa alusão a um dos hits maliciosos de Alcina, a folclórica “Calor na Bacurinha”. Conjugando presente, passado e futuro, Edy não perde uma chance de ouvir a música cubana de Celia Cruz e a francesa Dalida, junto aos contemporâneos Zé Manoel, Ayrton Montarroyos, Filipe Catto e Edson Cordeiro, com quem gravou uma faixa para saudar Raul. Mas avisa: “Tem muita coisa que não entra na minha vitrola!…”.
Serviço
Título. Livro “Eu Só Fiz Viver: A História Oral Desavergonhada de Edy Star”
Autor. Ricardo Santhiago com as colaborações de Daniel Lopes Saraiva e Igor Lemos Moreira
Editora. Popessuara, com 384 páginas
Quanto. A partir de R$60,00