Só de cueca, depois de despir-se quase integralmente, Márcio Hayala abandona o escritório alocado na mansão da família. É a decisão que permite à personagem de Tony Ramos livrar-se do controle exercido pelo patriarca, enquanto impõe o sacrifício à sua abastada condição financeira como herdeiro. O impacto causado pela cena de “O Astro” até hoje mexe com Cláudio Gomes. À noite, enquanto preparava pacientemente seus papagaios para “ficarem ‘reboladeiros’”, ele, aos 15 anos, tinha como “ritual assistir a essas novelas que mais pareciam filmes de ação e dos bons!”, conta.

Não foi por outro motivo que Cláudio batizou sua primogênita em homenagem à criadora desta e de outras histórias tornadas célebres na televisão brasileira, a partir de sua forma aportuguesada: “Cler”, um nome de “imposição sonora incrível”, diz. Curiosamente, a musa inspiradora, Janete Clair, também adotou o sobrenome artístico como um tributo.

Nascida há um século e registrada Jenete Emmer por erro do escrivão que não compreendeu o sotaque libanês de seu pai, a autora passou a assinar Janete Clair ainda quando trabalhava no rádio, veículo para o qual escreveu mais de 30 novelas, numa alusão à música “Clair de Lune”, de Debussy.

Mineira da pequena cidade de Conquista, a novelista terá o centenário exaltado com a exposição “Janete Clair 100 Anos: A Usineira de Sonhos” – cujo título toma emprestado o epíteto concedido pelo poeta Carlos Drummond de Andrade –, no Museu da Imagem e do Som, no Rio, o relançamento de seu único romance, “Nenê Bonet”, pela editora Instante, além de uma programação especial na Rede Globo, onde Janete pavimentou sua trajetória artística. 

Terremoto

Entre 1967 e 1973, ela escreveu sete novelas para o então horário nobre da emissora, às 8h da noite, como relembra Lucas Martins Néia, roteirista e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Na visão do pesquisador, a “capacidade criativa inegável” de Janete se aliou à hegemonia da Rede Globo, com o declínio e a falência das concorrentes TV Tupi e Excelsior.

Algo como uma conjugação de astros para que ela fosse “a pessoa certa no momento certo”. Chamada às pressas para apagar o incêndio de “Anastácia, a Mulher Sem Destino”, ela inseriu um terremoto na trama a fim de dar cabo à confusão de personagens criados por Emiliano Queiroz. No final de 1969, emplacou “Véu de Noiva”.

A consagração no ano seguinte, com “Irmãos Coragem”, ia ao encontro da tendência do período de “construção de um modelo realista de telenovela que permanece até hoje, em contraposição às novelas fantasiosas, por exemplo, de Glória Magadan”, aponta o roteirista, professor e pesquisador de teledramaturgia, Reynaldo Maximiano.

Atendendo a um ritmo industrial exigido pela grade de programação instituída pela Rede Globo, Janete se esmerou, à máquina de escrever, no que Maximiano chama de “carpintaria de unir o melodrama a um suco de Brasil”. Ele nota que, a partir desse momento, questões relativas à realidade sociocultural do país passaram a ser essenciais. “A Janete talvez seja a autora que melhor estruturou o gênero na televisão, tanto pela quantidade quanto pela atenção à audiência, à discussão das ruas”, afiança.

Desejo

A fórmula, segundo Maximiano, era “unir humor e melodrama sem chatear o público”. Algumas características formais, como “a construção em três atos, a progressão de eventos e complicações em pontos muito demarcados da trama e o número de capítulos concentrados em cerca de 160” ofereciam um certo controle necessário ao rigor narrativo buscado pela autora, que carregava influências do teatro, do folhetim e do melodrama, estando estes dois últimos nas origens da telenovela.

Regrinhas estabelecidas por ela própria, como o casal principal se beijar até o 16º capítulo, auxiliavam Janete nessa construção. “Ela tinha uma veia dramatúrgica muito forte, tematizou o Brasil e criou histórias profícuas”, frisa Maximiano. 

Nilson Xavier concorda. Autor do “Almanaque da Telenovela Brasileira” e do portal Teledramaturgia.com.br, ele ressalta a capacidade de Janete de estabelecer “uma comunicação direta com o povo”. “Ela escrevia novelas românticas, dramáticas e açucaradas que atendiam ao desejo do público, apesar de ter sido muito criticada por alguns excessos fantasiosos”, assinala. Maximiano problematiza esses dois pontos a partir do sucesso de “Pecado Capital”, de 1975. 

“Essa novela desmonta o preconceito de parte da crítica de que não havia luta de classes nas novelas, quando só havia luta de classes, mesmo que pelo esquema estereotipado”. Lucas Néia reforça que, conjuntamente aos  “amores proibidos e românticos”, Janete debatia temas como “o êxodo rural em ‘Selva de Pedra’”. No caso de “Pecado Capital”, o enredo protagonizado por Francisco Cuoco, na perspectiva de Maximiano, “segue atualíssimo”.

Legado

“É pecado querer ter uma vida melhor? Essa é a premissa, através da história do Carlão, que encontra uma mala de dinheiro no seu carro no contexto de um Brasil com inflação galopante, arrocho salarial e abandono do Estado. Mais do que querer, ele precisa daquele dinheiro”, analisa Maximiano, que define a personagem como anti-herói, outra máxima que passou a imperar a partir do êxito de “Beto Rockfeller” na TV Tupi, em 1968, escrita por Bráulio Pedroso. 

Maximiano lembra que, em “Pecado Capital”, ainda havia a presença marcante de Lucinha, vivida por Betty Faria, par romântico do machista Carlão, uma operária consciente que almeja “subir na vida pelo trabalho e não através do casamento”. “Janete criou personagens sintonizadas com o movimento feminista, num cenário em que se discutia pílula anticoncepcional, entrada no mercado de trabalho e equiparação salarial”, afirma. 

Já em “Coração Alado”, de 1980, Janete abordou a polêmica em torno do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, como relembra Lucas Néia. Ele também recupera uma crônica de Drummond publicada após o capítulo final de “O Astro”, em 1978, quando enfim é revelado “quem matou Salomão Hayala”. “Agora que ‘O Astro’ acabou, vamos cuidar do Brasil”, conclamava o poeta, fato que traz a inevitável conclusão da presença das obras de Janete Clair “em diversos círculos culturais, dos mais populares aos intelectualizados”. 

Para Néia, o principal legado da autora de sucessos como “Irmãos Coragem”, “Selva de Pedra” e “Pai Herói” – e que também assinou fracassos “devidamente esquecidos pela Rede Globo” – além da influência sob Gilberto Braga e a pupila Glória Perez (responsável por finalizar a novela “Eu Prometo” após a morte de Janete, em 1983, vítima de câncer no intestino) é “ter dialogado com seu tempo e entendido questões específicas da lógica narrativa presente na história a conta-gotas”. Maximiano salienta o “caráter antropofágico da telenovela”. “Ela devora ideias e estilos de outras artes a seu bel-prazer, sem pedir licença, porque quer e precisa…”, arremata.

Sucesso às pressas, 100% de audiência e remakes

Casada com o também dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), Janete Clair foi convocada na última hora para substituir uma novela do marido, em 1975, quando “Roque Santeiro” recebeu o veto da censura militar. Enquanto escrevia os capítulos de “Pecado Capital”, a solução foi exibir um compacto de “Selva de Pedra”, única novela da história a alcançar 100% de audiência, outro marco na carreira da autora. 

Roteirista e pesquisador de teledramaturgia, Reynaldo Maximiano lembra que uma das sacadas de Janete foi “aproveitar os mesmos cenários, figurinos, objetos de cena e elenco de ‘Roque Santeiro’ para ‘Pecado Capital’, criando personagens próximos aos que os atores interpretariam antes da censura proibir a novela, o que demonstra seu cuidado com a equipe”.

Como exemplo, Maximiano cita a dinâmica do triângulo amoroso presente nas duas dramaturgias e as figuras do viúvo e do anti-herói. Outro trunfo que garantiu êxito a “Pecado Capital” foi ter se valido da verossimilhança, a partir de uma opção do diretor Daniel Filho. “As novelas eram gravadas em locações, não havia cidade cenográfica. O pessoal da classe trabalhadora reconhecia o bairro, o botequim, o ambiente. Nas novelas da Janete Clair, os personagens vão à feira e reclamam do preço dos alimentos, com uma linguagem coloquial próxima à audiência”, salienta Maximiano.

Ter criado aquela que para muitos é o ponto-alto de sua trajetória a partir de uma demanda urgente escancara a capacidade da novelista. Ironicamente, ao ser refilmada, na década de 1990, “Pecado Capital” frustrou a Globo e decepcionou os fãs. Já o remake de “O Astro”, em 2011, quando a emissora inaugurou o horário das 11h da noite para novelas, obteve retornos positivos. Segundo Maximiano, a versão concebida por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro “brincou com os clichês da telenovela e da própria Janete Clair, incorporando um aspecto kitsch”. 

Roteirista e estudioso do tema, Lucas Martins Néia corrobora. “O Alcides Nogueira e o Geraldo Carneiro encontraram uma equação interessante entre realizar um tributo e manter a essência do original, mas não ser uma cópia, com a Regina Duarte, por exemplo, vivendo uma personagem muitos tons acima do naturalismo do restante do elenco”, elogia. Na opinião de Maximiano, “a sociedade mudou e a forma de fisgar o público precisa ser mais ágil”. “Não sei se o esquema de novela da Janete Clair da década de 1970 funcionaria hoje em dia”, admite.